Charles
Uai professor,
você também é macumbeiro?
Fico cada vez mais espantado com as consequências que a falta de conhecimento
pode causar. Mas quando se trata de “religiões” afrodescendentes no Brasil,
isso toma uma proporção inacreditável. O último evento de intolerância
religiosa que tomou grande proporção na mídia nacional aconteceu no dia
16/06/2015, no Rio de Janeiro, contra uma menina de apenas 11 anos, ela foi
ferida por uma pedra na cabeça ao deixar um culto de candomblé na Penha, zona
norte do Rio de Janeiro. Segundo testemunhas, a menina foi atacada por
evangélicos e foi vítima de intolerância religiosa. Com a pedrada, a jovem
chegou a desmaiar e perder momentaneamente a memória. Os autores da
pedrada, que seriam dois homens, conseguiram fugir. Pouco antes da agressão,
eles teriam xingado e provocado os adeptos do Candomblé que estavam com a
menina.
Não quero discutir aqui o preconceito religioso por si só, que apesar de ser
estúpido é muito comum em nossa sociedade. Para discutir preconceito religioso
no Brasil, e ser justo, penso que eu deveria citar exemplos dos preconceitos
que sofrem todos os seguimentos religiosos no Brasil. Não é esse o meu objetivo.
Quero falar de algo que percebo em minha prática religiosa. Após me tornar
adepto do candomblé, percebi que ser candomblecista no Brasil não é tarefa
fácil. Não temos a liberdade de falar sobre esse assunto abertamente com todas
as pessoas, pois muitos têm receio. Tudo que envolve a religião dos negros tem
que ser “disfarçado” ou “escondido” Os trajes necessários, os “colares” de
proteção, os cantos/rezas, etc. Percebo que o que faz parte das religiões
afrodescendentes é estigmatizado, parece carregar uma mácula, ou que possui
ligação com o nefasto.
A maioria das pessoas possui opinião formada sobre o Candomblé ou a Umbanda,
sobre o que ouviram dizer, ou sobre o que leram. A maioria dessas opiniões é
negativa, tem associação com alguma coisa ligada ao mal, “coisa” esta que as
pessoas também não sabem explicar.
A conclusão é óbvia, a população brasileira, em sua grande
maioria, não conhece o Candomblé, não sabe bem ao certo sobre seus
significados, sua origem, como chegou ao Brasil, de onde veio, etc. Muito em
parte pela preponderância do cristianismo, base de religiões monoteístas,
arraigado em nossa cultura desde a colonização, mas também pela mídia, que não
traz esse assunto a tona. A escola também possui um papel fundamental para
reforçar esse desconhecimento, uma vez que ignora essa temática, que faz parte
da nossa cultura e da formação social desse país. Para tanto, foi necessária a
criação de uma lei: a Lei 11.645/08 determina que nos estabelecimentos de
ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório
o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. Esse desconhecimento
gera o preconceito, a exclusão e a intolerância.
Um dos fatos que evidencia a falta de conhecimento sobre as religiões afro em
nossa sociedade, e que incomoda seus adeptos, é
a forma generalizada de se
dirigir aos praticantes destas religiões: Macumbeiros.
Comumente, a primeira definição de Macumba que
se encontra nos dicionários é: antigo instrumento musical de percussão, espécie
de reco-reco, de origem africana, e Macumbeiro é o tocador desse instrumento.
Popularmente, a palavra macumba é
utilizada para designar genericamente os cultos sincréticos afro-brasileiros
derivados de práticas religiosas e divindades dos povos africanos trazidos ao
Brasil como escravos, os povos bantos e os iorubanos, como o Candomblé e a
Umbanda. Entretanto, ainda que macumba seja
confundida com o Candomblé e a Umbanda, os praticantes e seguidores dessas
religiões recusam o uso da palavra para designá-las.
A forma como a palavra macumba é utilizada, remete a uma generalização
esdrúxula dos cultos afros, o que se concretiza em um verdadeiro absurdo, posto
que existem variações diversas entre estes cultos. Para os praticantes desses
cultos, isso é um grande desrespeito. Confundir o Candomblé com a Umbanda, por
exemplo, é um erro grave devido à origem e as práticas de cada segmento. O
próprio Candomblé não é uma religião única, ela possui significativas variações.
Para que haja uma boa compreensão sobre o Candomblé precisamos nos remeter aos
motivos e origens da transição forçada dos negros africanos para a América. A
razão da vinda dos negros para o território brasileiro é sabida, mas para se
ter uma noção correta do estabelecimento e das características das religiões
afro no Brasil é muito importante entender de onde vieram esses negros, pois o
continente africano é enorme e diverso e sua cultura varia de região para
região.
O tráfico negreiro provocou um dos maiores deslocamentos populacionais da
história da humanidade. Esse deslocamento ficou conhecido como diáspora
africana. Uma pesquisa recente coordenada pelo professor David Eltis, da
Universidade de Emory, nos Estados Unidos, mostra que, entre os séculos XVI e
XIX, mais de 12,5 milhões de africanos foram escravizados e exportados para a
América, para a Europa e algumas ilhas do oceano Atlântico. Desses, apenas
cerca de 10,7 milhões chegaram vivos ao fim da travessia.
Tudo começou no século XV, quando os portugueses abriram o caminho para a
exploração da costa da África subsaariana, depois de cruzarem o Cabo Bojador,
em 1434. Ao longo dos anos seguintes, os navegadores lusitanos avançaram cada
vez mais rumo ao sul, até atingirem, na década de 1470, a baía de Biafra, na
região dos atuais Nigéria e Camarões. Com o estabelecimento do rendoso tráfico
de pessoas escravizadas, o principal polo de exportação de mão-de-obra escrava
era a África Ocidental, região que englobava todo o território compreendido
entre os atuais Senegal e Camarões. Essa área era responsável por quase 60% das
exportações e, nela, a região da Senegâmbia representava a principal fonte de
venda de africanos cativos. Ao mesmo tempo, a região congo-angolana despontava
como o segundo grande celeiro de escravos no continente.
A maior parte dos escravos africanos que desembarcaram no Brasil veio da região
ocidental da África. Essa região foi o berço das religiões afrodescendentes que
hoje encontramos no Brasil. Devido à diáspora desses povos para várias regiões
do continente americano, sua cultura se tornou parte dos países onde foram
escravizados, transformando e formando a sociedade de países como o Haiti, Cuba
e Brasil.
Muitos acham que a estrutura do candomblé brasileiro é igual ao que existiu na
África. Que os ritos, a forma de organização são exatamente iguais as que os
africanos praticavam em seu território de origem. Isso é um grande erro.
Obviamente os fundamentos religiosos são preservados, como a língua dos
iorubas. Mas muito se adaptou a realidade brasileira. Os africanos que foram
trazidos forçadamente para o Brasil, vieram de vários reinos, muitas vezes
inimigos entre si. Cada um desses reinos possuíam características religiosas
diferentes, posto que, segundo a crença do povo ioruba cada divindade governava
um reino. Logo todos os que moravam em determinada comunidade eram vinculados
àquela divindade.
Os deuses dos escravos que vieram para o Brasil são os Orixás. Apenas
alguns deles são cultuados no nosso país: Essú, Ògun, Osossì, Osanyin,
Obalúaye, Òsúmàré, Nàná Buruku, Sàngó, Oya, Oba, Ewa, Osun, Yemanjá, Logun Ede,
Oságuian e Osàlufan. A palavra Candomblé possui dois significados: Candomblé
seria uma modificação fonética de “Candonbé”, um tipo de atabaque usado
pelos negros de Angola; ou ainda, viria de “Candonbidé”, que quer dizer
“ato de louvar, pedir por alguém ou por alguma coisa”. A palavra Candomblé
define, no Brasil, o que chamamos de culto afro-brasileiro, ou seja: “Uma
Cultura Africana em Solo Brasileiro”. No Brasil o Candomblé possui
significativas diferenças devido à região de origem dos escravos que aqui
chegaram. Por esse motivo a palavra Candomblé também é usada para definir o
modelo de cada tribo ou região africana, conforme alguns exemplos seguir:
Os grupos que falavam a língua ioruba - entre eles os de Oyó, Abeokutá, Ijexá,
Ebá e Benin - constituíram uma forma de culto denominada de Candomblé da Nação
Ketu. Ketu era uma cidade igual as demais, mas no Brasil passou a designar o
culto de Candomblé da Nação Ketu ou Alaketu.
A palavra “Nação” entra aí não para definir uma nação política, pois Nação Jeje
não existia em termos políticos. O que é chamado de Nação Jeje é o Candomblé
formado pelos povos vindos da região do Dahomé e formado pelos povos Mahin.
Os Candomblés da Nação Angola e Congo foram desenvolvidos no Brasil com a
chegada desses africanos vindos de Angola e Congo.
O Candomblé na África é predominantemente patriarcal. No Brasil esta religião
tornou-se matriarcal, com várias mães de santo na frente do conhecimento. Foi
através do pulso forte destas mães que se constituiu o Candomblé brasileiro,
preservando tradições africanas. A história mostra que nas primeiras casas de
candomblé no Brasil, homens eram proibidos de entrar no xiré (roda de dança
para os orixás).
Ao fundarem as primeiras casas de candomblé na cidade da Bahia, os negros
descendentes dos iorubanos, além de cultuarem a sua divindade, acolheram negros
de outros reinos, permitindo a esses que cultuassem a sua divindade, ou seja, a
divindade do seu reino naquela casa. Uma das grandes riquezas culturais que se
configurou no Candomblé brasileiro é exatamente essa “mistura”, onde várias
divindades, de diferentes reinos são cultuadas em um mesmo lugar, na mesma
casa, formando a família de santo. Uma casa de candomblé é na verdade uma forma
de reconstrução da África no Brasil, onde cada reino é cultuado, através de
seus deuses. Esse princípio de acolhimento era muito comum entre os negros escravos.
Eles sabiam a importância de se ajudarem, unirem-se para remediar a situação
penosa da escravidão. A religião se tornou a forma mais forte de manter viva
sua cultura, sua visão de mundo, seus cantos, e assim conseguiram amenizar os
infortúnios de sua nova condição humana.
Nesse pequeno recorte já se pode perceber a diversidade do candomblé no Brasil,
devido à variedade de negros que aqui chegaram de inúmeras regiões, com
costumes diferentes, crenças diversas, etc. Em território brasileiro, estes
povos souberam se adaptar sem perder suas características. Mesmo com a
imposição do catolicismo. Na
época da escravidão no Brasil, os escravos africanos criaram uma
maneira criativa e inteligente de enganar os seus senhores. Invocavam os seus
deuses africanos sob a forma dos santos católicos: Oxóssi na forma
de São Sebastião, Ogum como São Jorge, Oxalá como Jesus
Cristo, Ibejis como Cosme e
Damião, Iansã como Santa Bárbara, os fios de
contas como Nossa Senhora do Rosário, entre outros.
A
grande preciosidade desse encontro de culturas é a permanência das tradições
africanas como aqui chegaram. Em uma casa de candomblé os rituais são levados a
sério. Candomblé é coisa séria, a tradição deve se mantida com rigorosidade. A
língua falada ainda é o Ioruba nas casas de Ketu. Nas casas do candomblé de
Angola, existe uma forte tentativa de resgatar a língua dos povos bantos que em
parte se perderam. A oralidade é fundamental para se manter e repassar os ritos
para as novas gerações. Existem estudiosos de antigos reinos na África que vêm
ao Brasil para verificarem como se realizavam determinados rituais e costumes
que se perderam na comunidade de origem.
Devido a essas inúmeras diversificações, torna-se essencial o conhecimento das
religiões afrodescendentes para que haja o respeito e a tolerância. Desvincular
a imagem do candomblé e da Umbanda de uma perspectiva negativa é fundamental
para que floresça o respeito, não só religioso, mas antes de qualquer coisa,
cultural. Eu acredito que não haja melhor instituição do que a escola para se
estruturar esse conhecimento em nosso meio social. A intolerância religiosa
permanece e cresce no nosso país, destaco aqui especialmente o preconceito às
religiões de matriz africana. Encontramos em nossos livros didáticos a história
da Igreja Católica, a Reforma Protestante, os nefastos tribunais de inquisição,
mas quase nada acerca das religiões afrodescendentes. É necessário discutir na
escola a deliberada intensão da Igreja Católica de eliminar a crenças dos
africanos que foram escravizados no Brasil, e não só destes, mas dos judeus,
que foram perseguidos no período colonial em que houve inquisição em nosso
país, e ainda o massacre contra os modos de vida dos índios . E aprofundar essa
discussão, promovendo um conhecimento verdadeiro e consolidado. As pessoas
precisam saber a bela história de criação do mundo contada pelo Candomblé.
Necessitam perceber que Lúcifer pertence à crença cristã e que este ser não
possui a menor ligação com nossa religião. Que a origem da associação do Orixá
Exu com o “diabo” tem origem nos cristãos, que entenderam que a forma de culto
dos africanos tem associação com o mal exatamente para desqualificá-la, para
violentar seu praticantes. A escola precisa se fazer presente para difundir
esse conhecimento, reduzindo o preconceito por meio do acesso aos saberes
acerca das religiões afrodescendentes.
A sociedade
brasileira é diversa, miscigenada, e o negro que aqui se estabeleceu contribuiu
para a formação social em vários aspectos. Negar isso, ou excluir esse fato é
negar a nossa formação original, nos transformando em copiadores/repetidores
contumazes de uma cultura imposta pelos colonizadores europeus, negando nossas
raízes e nossa identidade.