- Êpa, essa viagem foi muito rápida! - Tô com muito calor! Essa roupa laranja é um inferno. - C viu? Quase morreu. Foi um grande estouro. - Os portões da escolha foi aberto. Saiu um monte de gente de uma vez. Encavalou. - Frita pastel e coxinha Rute. - Vô leva esse pilantra no pau! Zé subiu no andaime. Maria chegou na casa de Andreia para cuidar do Pedrinho. Raimundo acabou desistindo de faltar ao trabalho. Laura faltou e comprou um atestado na praça 7. Ninguém aqui é vítima. Ninguém aqui sou eu.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Macumbeiro, eu?

Charles

Uai professor, você também é macumbeiro?

            Fico cada vez mais espantado com as consequências que a falta de conhecimento pode causar. Mas quando se trata de “religiões” afrodescendentes no Brasil, isso toma uma proporção inacreditável. O último evento de intolerância religiosa que tomou grande proporção na mídia nacional aconteceu no dia 16/06/2015, no Rio de Janeiro, contra uma menina de apenas 11 anos, ela foi ferida por uma pedra na cabeça ao deixar um culto de candomblé na Penha, zona norte do Rio de Janeiro. Segundo testemunhas, a menina foi atacada por evangélicos e foi vítima de intolerância religiosa. Com a pedrada, a jovem chegou a desmaiar e perder momentaneamente a memória. Os autores da pedrada, que seriam dois homens, conseguiram fugir. Pouco antes da agressão, eles teriam xingado e provocado os adeptos do Candomblé que estavam com a menina.
            Não quero discutir aqui o preconceito religioso por si só, que apesar de ser estúpido é muito comum em nossa sociedade. Para discutir preconceito religioso no Brasil, e ser justo, penso que eu deveria citar exemplos dos preconceitos que sofrem todos os seguimentos religiosos no Brasil. Não é esse o meu objetivo.
            Quero falar de algo que percebo em minha prática religiosa. Após me tornar adepto do candomblé, percebi que ser candomblecista no Brasil não é tarefa fácil. Não temos a liberdade de falar sobre esse assunto abertamente com todas as pessoas, pois muitos têm receio. Tudo que envolve a religião dos negros tem que ser “disfarçado” ou “escondido” Os trajes necessários, os “colares” de proteção, os cantos/rezas, etc. Percebo que o que faz parte das religiões afrodescendentes é estigmatizado, parece carregar uma mácula, ou que possui ligação com o nefasto.
            A maioria das pessoas possui opinião formada sobre o Candomblé ou a Umbanda, sobre o que ouviram dizer, ou sobre o que leram. A maioria dessas opiniões é negativa, tem associação com alguma coisa ligada ao mal, “coisa” esta que as pessoas também não sabem explicar.
         A conclusão é óbvia, a população brasileira, em sua grande maioria, não conhece o Candomblé, não sabe bem ao certo sobre seus significados, sua origem, como chegou ao Brasil, de onde veio, etc. Muito em parte pela preponderância do cristianismo, base de religiões monoteístas, arraigado em nossa cultura desde a colonização, mas também pela mídia, que não traz esse assunto a tona. A escola também possui um papel fundamental para reforçar esse desconhecimento, uma vez que ignora essa temática, que faz parte da nossa cultura e da formação social desse país. Para tanto, foi necessária a criação de uma lei: a Lei 11.645/08 determina que nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. Esse desconhecimento gera o preconceito, a exclusão e a intolerância.
            Um dos fatos que evidencia a falta de conhecimento sobre as religiões afro em nossa sociedade, e que incomoda seus adeptos, é a forma generalizada de se dirigir aos praticantes destas religiões: Macumbeiros.
            Comumente, a primeira definição de Macumba que se encontra nos dicionários é: antigo instrumento musical de percussão, espécie de reco-reco, de origem africana, e Macumbeiro é o tocador desse instrumento. Popularmente, a palavra macumba é utilizada para designar genericamente os cultos sincréticos afro-brasileiros derivados de práticas religiosas e divindades dos povos africanos trazidos ao Brasil como escravos, os povos bantos e os iorubanos, como o Candomblé e a Umbanda. Entretanto, ainda que macumba seja confundida com o Candomblé e a Umbanda, os praticantes e seguidores dessas religiões recusam o uso da palavra para designá-las.
            A forma como a palavra macumba é utilizada, remete a uma generalização esdrúxula dos cultos afros, o que se concretiza em um verdadeiro absurdo, posto que existem variações diversas entre estes cultos. Para os praticantes desses cultos, isso é um grande desrespeito. Confundir o Candomblé com a Umbanda, por exemplo, é um erro grave devido à origem e as práticas de cada segmento. O próprio Candomblé não é uma religião única, ela possui significativas variações.
            Para que haja uma boa compreensão sobre o Candomblé precisamos nos remeter aos motivos e origens da transição forçada dos negros africanos para a América. A razão da vinda dos negros para o território brasileiro é sabida, mas para se ter uma noção correta do estabelecimento e das características das religiões afro no Brasil é muito importante entender de onde vieram esses negros, pois o continente africano é enorme e diverso e sua cultura varia de região para região.
            O tráfico negreiro provocou um dos maiores deslocamentos populacionais da história da humanidade. Esse deslocamento ficou conhecido como diáspora africana. Uma pesquisa recente coordenada pelo professor David Eltis, da Universidade de Emory, nos Estados Unidos, mostra que, entre os séculos XVI e XIX, mais de 12,5 milhões de africanos foram escravizados e exportados para a América, para a Europa e algumas ilhas do oceano Atlântico. Desses, apenas cerca de 10,7 milhões chegaram vivos ao fim da travessia.
            Tudo começou no século XV, quando os portugueses abriram o caminho para a exploração da costa da África subsaariana, depois de cruzarem o Cabo Bojador, em 1434. Ao longo dos anos seguintes, os navegadores lusitanos avançaram cada vez mais rumo ao sul, até atingirem, na década de 1470, a baía de Biafra, na região dos atuais Nigéria e Camarões. Com o estabelecimento do rendoso tráfico de pessoas escravizadas, o principal polo de exportação de mão-de-obra escrava era a África Ocidental, região que englobava todo o território compreendido entre os atuais Senegal e Camarões. Essa área era responsável por quase 60% das exportações e, nela, a região da Senegâmbia representava a principal fonte de venda de africanos cativos. Ao mesmo tempo, a região congo-angolana despontava como o segundo grande celeiro de escravos no continente. 
            A maior parte dos escravos africanos que desembarcaram no Brasil veio da região ocidental da África. Essa região foi o berço das religiões afrodescendentes que hoje encontramos no Brasil. Devido à diáspora desses povos para várias regiões do continente americano, sua cultura se tornou parte dos países onde foram escravizados, transformando e formando a sociedade de países como o Haiti, Cuba e Brasil.
            Muitos acham que a estrutura do candomblé brasileiro é igual ao que existiu na África. Que os ritos, a forma de organização são exatamente iguais as que os africanos praticavam em seu território de origem. Isso é um grande erro. Obviamente os fundamentos religiosos são preservados, como a língua dos iorubas. Mas muito se adaptou a realidade brasileira. Os africanos que foram trazidos forçadamente para o Brasil, vieram de vários reinos, muitas vezes inimigos entre si. Cada um desses reinos possuíam características religiosas diferentes, posto que, segundo a crença do povo ioruba cada divindade governava um reino. Logo todos os que moravam em determinada comunidade eram vinculados àquela divindade.
            Os deuses dos escravos que vieram para o Brasil são os Orixás. Apenas  alguns deles são cultuados no nosso país: Essú, Ògun, Osossì, Osanyin, Obalúaye, Òsúmàré, Nàná Buruku, Sàngó, Oya, Oba, Ewa, Osun, Yemanjá, Logun Ede, Oságuian e Osàlufan. A palavra Candomblé possui dois significados: Candomblé seria uma modificação fonética de “Candonbé”, um tipo de atabaque usado pelos negros de Angola; ou ainda, viria de “Candonbidé”, que quer dizer “ato de louvar, pedir por alguém ou por alguma coisa”. A palavra Candomblé define, no Brasil, o que chamamos de culto afro-brasileiro, ou seja: “Uma Cultura Africana em Solo Brasileiro”. No Brasil o Candomblé possui significativas diferenças devido à região de origem dos escravos que aqui chegaram. Por esse motivo a palavra Candomblé também é usada para definir o modelo de cada tribo ou região africana, conforme alguns exemplos seguir:


            Os grupos que falavam a língua ioruba - entre eles os de Oyó, Abeokutá, Ijexá, Ebá e Benin - constituíram uma forma de culto denominada de Candomblé da Nação Ketu. Ketu era uma cidade igual as demais, mas no Brasil passou a designar o culto de Candomblé da Nação Ketu ou Alaketu.
            A palavra “Nação” entra aí não para definir uma nação política, pois Nação Jeje não existia em termos políticos. O que é chamado de Nação Jeje é o Candomblé formado pelos povos vindos da região do Dahomé e formado pelos povos Mahin.
            Os Candomblés da Nação Angola e Congo foram desenvolvidos no Brasil com a chegada desses africanos vindos de Angola e Congo.
            O Candomblé na África é predominantemente patriarcal. No Brasil esta religião tornou-se matriarcal, com várias mães de santo na frente do conhecimento. Foi através do pulso forte destas mães que se constituiu o Candomblé brasileiro, preservando tradições africanas. A história mostra que nas primeiras casas de candomblé no Brasil, homens eram proibidos de entrar no xiré (roda de dança para os orixás).
            Ao fundarem as primeiras casas de candomblé na cidade da Bahia, os negros descendentes dos iorubanos, além de cultuarem a sua divindade, acolheram negros de outros reinos, permitindo a esses que cultuassem a sua divindade, ou seja, a divindade do seu reino naquela casa. Uma das grandes riquezas culturais que se configurou no Candomblé brasileiro é exatamente essa “mistura”, onde várias divindades, de diferentes reinos são cultuadas em um mesmo lugar, na mesma casa, formando a família de santo. Uma casa de candomblé é na verdade uma forma de reconstrução da África no Brasil, onde cada reino é cultuado, através de seus deuses. Esse princípio de acolhimento era muito comum entre os negros escravos. Eles sabiam a importância de se ajudarem, unirem-se para remediar a situação penosa da escravidão. A religião se tornou a forma mais forte de manter viva sua cultura, sua visão de mundo, seus cantos, e assim conseguiram amenizar os infortúnios de sua nova condição humana.
            Nesse pequeno recorte já se pode perceber a diversidade do candomblé no Brasil, devido à variedade de negros que aqui chegaram de inúmeras regiões, com costumes diferentes, crenças diversas, etc. Em território brasileiro, estes povos souberam se adaptar sem perder suas características. Mesmo com a imposição do catolicismo. Na época da escravidão no Brasil, os escravos africanos criaram uma maneira criativa e inteligente de enganar os seus senhores. Invocavam os seus deuses africanos sob a forma dos santos católicos: Oxóssi na forma de São Sebastião, Ogum como São Jorge, Oxalá como Jesus Cristo, Ibejis como Cosme e Damião, Iansã como Santa Bárbara, os fios de contas como Nossa Senhora do Rosário, entre outros.
            A grande preciosidade desse encontro de culturas é a permanência das tradições africanas como aqui chegaram. Em uma casa de candomblé os rituais são levados a sério. Candomblé é coisa séria, a tradição deve se mantida com rigorosidade. A língua falada ainda é o Ioruba nas casas de Ketu. Nas casas do candomblé de Angola, existe uma forte tentativa de resgatar a língua dos povos bantos que em parte se perderam. A oralidade é fundamental para se manter e repassar os ritos para as novas gerações. Existem estudiosos de antigos reinos na África que vêm ao Brasil para verificarem como se realizavam determinados rituais e costumes que se perderam na comunidade de origem.
            Devido a essas inúmeras diversificações, torna-se essencial o conhecimento das religiões afrodescendentes para que haja o respeito e a tolerância. Desvincular a imagem do candomblé e da Umbanda de uma perspectiva negativa é fundamental para que floresça o respeito, não só religioso, mas antes de qualquer coisa, cultural. Eu acredito que não haja melhor instituição do que a escola para se estruturar esse conhecimento em nosso meio social. A intolerância religiosa permanece e cresce no nosso país, destaco aqui especialmente o preconceito às religiões de matriz africana. Encontramos em nossos livros didáticos a história da Igreja Católica, a Reforma Protestante, os nefastos tribunais de inquisição, mas quase nada acerca das religiões afrodescendentes. É necessário discutir na escola a deliberada intensão da Igreja Católica de eliminar a crenças dos africanos que foram escravizados no Brasil, e não só destes, mas dos judeus, que foram perseguidos no período colonial em que houve inquisição em nosso país, e ainda o massacre contra os modos de vida dos índios . E aprofundar essa discussão, promovendo um conhecimento verdadeiro e consolidado. As pessoas precisam saber a bela história de criação do mundo contada pelo Candomblé. Necessitam perceber que Lúcifer pertence à crença cristã e que este ser não possui a menor ligação com nossa religião. Que a origem da associação do Orixá Exu com o “diabo” tem origem nos cristãos, que entenderam que a forma de culto dos africanos tem associação com o mal exatamente para desqualificá-la, para violentar seu praticantes. A escola precisa se fazer presente para difundir esse conhecimento, reduzindo o preconceito por meio do acesso aos saberes acerca das religiões afrodescendentes.
               A sociedade brasileira é diversa, miscigenada, e o negro que aqui se estabeleceu contribuiu para a formação social em vários aspectos. Negar isso, ou excluir esse fato é negar a nossa formação original, nos transformando em copiadores/repetidores contumazes de uma cultura imposta pelos colonizadores europeus, negando nossas raízes e nossa identidade.

terça-feira, 16 de junho de 2015

A Possibilidade de Ser Livre

Caroline Teixeira

Há um tempo me propus a escrever para o blog de alguns amigos, entretanto, como é comum hoje em dia, adiei a escrita impreterivelmente. Temas surgiram e desapareceram sem serem escritos. Quando enfim, descobri o que gostaria de escrever para o blog, tinha de tratar justamente desse eterno adiamento tão presente no nosso dia-a-dia. Tive a sorte de estudar um filósofo que trata disso, mas não apenas disso, da melhor forma possível, Kierkegaard. Sendo assim, resolvi, partindo de Kierkegaard, no seu livro: “O Conceito de Angústia”, tratar de questões do nosso dia-a-dia, em primeira pessoa.
Sou estudante de filosofia, no quinto período, na UFMG; tenho 21 anos e um mundo de possibilidades pela frente. Ter opções de escolha é incrível, mas o que fazer para tomar a decisão correta? O que me garante que escolhi a melhor opção? Nada! Não há garantias! Fazer filosofia pode ter sido uma boa escolha, assim como posso “quebrar a cara” monumentalmente. Mas é preciso decidir, e de/cisão implica uma cisão, um rompimento, com as demais opções. Por isso escolher é tão difícil, por isso é cada vez mais comum nos depararmos com pessoas estagnadas em suas vidas, contemplando seu mundo de possibilidades sem nada escolher; sem efetivamente viver. Parecemos ter nos esquecido que “quebrar a cara” faz parte da vida, que precisamos aprender a lidar com o sofrimento, ao invés de evitá-lo nos trancando em nosso mundinho (#selfie), onde acreditamos ter controle sobre a situação.
Passando para o campo afetivo, entre muitas coisas que Kierkegaard diz da mesma teoria, e com as quais eu concordo, ele deixa claro que não existe A Pessoa, uma alma gêmea. Isso porque eu não sou tão especial assim, e ninguém é tão especial assim para mim previamente. O que nos torna especiais para as pessoas é a história que construímos juntos. Obviamente fui rever todas as minhas relações, e pude constatar que as pessoas que eu amo, são pessoas com as quais eu construí uma história, no caso da minha família é uma história imposta mas ainda assim, com todos os problemas e as dificuldades de convivência, nos amamos. Meus amigos de longa data, a mesma coisa.
Bem, isso me ajudou a entender porque eu gosto cada vez menos de relações casuais. Sempre me pareceu vazio, e vazio é a palavra (Tinder e afins*). Quando transo com uma pessoa e isso não significa absolutamente nada além de um instante de prazer, daí um mês eu já não lembro qual foi a sensação de ter estado com aquela pessoa, o que acho péssimo. Me sentir indiferente faz com que eu me sinta vazia e o vazio angustia. O problema é que hoje em dia é bem difícil achar pessoas que signifiquem algo, da mesma forma que é difícil significar algo para alguém, e quando as encontramos, não são pessoas dispostas a tentar construir alguma coisa, muito menos uma história.
Atualmente não consigo ficar com uma pessoa para depois termos de correr um do outro para não nos apegarmos, e perguntei-me por um segundo: Qual é o meu problema? O problema não está no fato de querer mais do que instantes de prazer, o problema está em achar que, seguindo a conduta dos filmes, novelas e romances contemporâneos, existe uma pessoa perfeita para mim, a qual eu preciso ter sorte de encontrar, e que, uma vez encontrada, não devo perder nunca mais, ou terei perdido minha única oportunidade de ser feliz. Como Kierkegaard demonstra, o especial está na história construída, logo, não se trata de encontrar A Pessoa, mas sim, alguém disposta a tentar construir uma história com você, o amor vêm como uma consequência dessa história, e basta pensarmos nas pessoas que amamos para darmos razão a ele.
No fim, a gente não se lembra de instantes, de momentos de alegria; nos lembramos das histórias, das pessoas que se fizeram importar. Pessoas que fizeram questão de participar das nossas vidas e que permitiram que participássemos das delas. Os instantes são bons, mas acabam assim que começam.

“O presente não é, entretanto, um conceito do tempo, a não ser justamente como algo infinitamente vazio de conteúdo, o que por sua vez, corresponde ao desaparecer infinito.”
(…)
 “O eterno, pelo contrário, é o presente.” (kierkegaard, 2011, p. 93) **

E a história se constrói no eterno. Já o instante, o casual, nem chega a existir, como poderia importar?
Saindo do campo afetivo e voltando às decisões do dia-a-dia. Assim como o vazio, as possibilidades também angustiam. Num mundo cada vez mais esteta ***, nos deparamos com infinitas situações que exigem uma decisão, mas ao invés de decidir, adiamos, procrastinamos; tudo para poder contemplar um pouco mais as possibilidades, refletir mais sobre qual seria a melhor decisão. É claro que refletir sobre escolhas importantes é algo bom, o problema é quando não saímos da reflexão, imaginamos diversas vidas, cada qual com base em uma escolha, mas não escolhemos absolutamente nada, e de repente, a vida passou, enquanto nos perdíamos num contemplamento estético. A insatisfação com nossas vidas é cada vez maior, não por falta de possibilidades, e sim por falta de escolhas, por falta de ação. Abandonar o mundo das possibilidades e arriscar-se no real, errar, quebrar a cara; isso é ser livre, isso é viver. A possibilidade angustia por exibir toda nossa capacidade de vir a ser algo, no entanto, o vir a ser só se realiza pelo agir. O medo de errar nos paralisa a tal ponto, que para não sofrer, decidimos simplesmente não viver, ou melhor, viver numa vida contemplativa, totalmente insatisfeitos com o rumo de nossas vidas, incapazes de admitirmos que poderíamos ter feito qualquer coisa, bastava tomar uma decisão.
Da mesma forma que há relacionamentos vazios, há palavras vazias. Discursar sobre ética não é, nem de longe, ser ético; falar bem sobre o amor, não é amar; pregar a solidariedade, não é ser solidário. Parece trivial, mas em tempos de Facebook, onde curtidas viram amém e compartilhamentos garantem lugares no paraíso; a fala, ou a escrita são vistas como ações. Novamente nos prendemos no contemplamento estético, onde vale mais falar sobre do que fazer algo a respeito.
Enfim, depois de ter visto tudo o que vi (que reforço, foi muito mais do que me propus a abordar aqui) com o excelente professor do Departamento de Filosofia, que me explicou Kierkegaard maravilhosamente, não pude mais adiar a escrita do artigo. Não pude mais adiar o fim dos casos casuais que me angustiavam com o vazio que deixam; mas pude ter certeza de que por mais difícil que tenha sido sair de casa, foi uma ótima decisão, redescobri quão boa é a sensação de liberdade que cada escolha traz. O que vai dar certo e o que não vai é impossível saber de antemão, mas o mundo nunca parou porque alguém estava sofrendo, logo, se der tudo errado, eu vou precisar saber lidar com a situação, e continuar decidindo, continuar vivendo, construindo minha história.
Porque viver é arriscar-se, e decidir é ser livre!

* Aplicativos cujas finalidades são relacionamentos sexuais casuais.
** Editora Vozes – Coleção Vozes de Bolso.
*** Um esteta aqui, deve ser visto como um pensador, um poeta. Uma pessoa que dedica-se mais à observação e contemplação das possibilidades do que à ação efetiva. Como foi dito no texto, analisar as possibilidades e observar os fatos não são um problema, o problema encontra-se na falta de decisão e ação diante das possibilidades.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Entre ter e não ter, ser e não ser no/o tempo

Mayara

          Depois de outro feriado prolongado, em que o tempo "livre" pareceu um convite para ocupa-lo com demandas há muito postergadas, intensificou uma reflexão sobre como temos lidado com essa contingência cotidiana, o tempo. Não que o "problema" de lidar com o tempo não seja algo que se repita em conversas e reclamações a todo momento, mas esse assunto tem me sensibilizado toda vez que tenho vontade de fazer algo que não está nos meus planos e/ou que pode não parecer tão importante quanto os meus "compromissos" de fato. Alguns dias atrás estava na sessão do filme ”Kara’i Ha’egui Kunha Karai ‘Ete*” (Os Verdadeiros Líderes Espirituais), e no intervalo parei para conversar com o Sr. Alcindo Wherá Tupa, líder espiritual guarani que conta com 105 anos de muita experiência, foram poucas palavras, mas tudo muito intenso. Agradeci pela sua presença e perguntei algumas coisas sobre sua estadia em Belo Horizonte, ele respondeu com um belo sorriso que tinha sido muito bem recebido, mas que desejava voltar pra casa. Em meio às suas palavras, que saíam com uma incrível leveza, ele disse que as coisas aqui eram aceleradas demais. Isso me incomodou muito, pois era algo sobre o que eu já vinha refletindo bastante. A sabedoria do Sr. Alcindo é indiscutível, o conhecimento que se pode apreender em um minuto de conversa é muito maior que mil livros podem oferecer. E exatamente naquele dia, quase não fui àquela sessão de cinema porque tinha outros "compromissos", alguns, inclusive, que diziam respeito à vida acadêmica.
          Fiquei pensando como estamos sempre preocupados com o tempo, os horários ditam nossa vida e nos aprisionam em marcadores que muitas vezes são imperceptíveis. É quase impossível passarmos um dia sequer sem olhar no relógio ou tentarmos de algum modo nos situarmos no tempo. O frenesi da vida urbana retira boa parte da nossa autonomia, quanta coisa gostaríamos de encaixar nessa nossa agenda que já nem é possível cumprir? Quantas atividades deixamos de praticar devido às exigências cotidianas? Ou até mesmo quanto ócio poderia permear nossas vidas? Momentos completamente livres, sem que necessariamente planos e metas estejam na fila das responsabilidades. Coisas simples, como se dar ao direito de dormir um dia inteiro, de não ler aqueles textos pra aula, não limpar o apartamento, de ver um filme ou vários, ou de ouvir música e olhar para o horizonte… Fazer tudo o que nossa consciência nos sugere, e que nos causa um sentimento de inutilidade, culpa ou de desperdício de tempo.
          Talvez seja por isso que eu goste tanto de viajar, pois são minhas imersões num universo em que o compromisso é não ter compromisso que me faz sentir mais leve, me possibilitando ver que menos é muitas vezes mais. Os dias que passo longe do espaço-tempo que me sufoca, são momentos em que esqueço das horas, das datas, dos meios de comunicação em massa ou das redes sociais. Tento não delimitar um roteiro, me permitindo experienciar os lugares de acordo com os interesses que vão surgindo. E tudo isso renova minhas energias, mas também me faz perceber que não quero continuar imprimindo um ritmo frenético a minha vida, fazendo da exceção o que deveria ser a regra.
          O "problema" não é O tempo, mas como o utilizamos. Não adianta desejarmos que os dias durem 40 horas ou que as semanas tenham 20 dias, se iremos ocupar todo o tempo disponível com mais obrigações. A questão da relatividade do tempo (não em termos da física quântica, mas de percepções/práticas) pode ser percebida nesses instantes que resolvemos não fazer nada, nos dias mais longos das férias ou em simples momentos que ostentamos o ócio. Desapegar dos marcadores espaço-temporais implica liberdade, o que nos é negado a todo momento, para alguns ainda mais que para outros.
          É claro que muita gente não pode se dar ao luxo de se livrar dessas amarras rotineiras. Para a classe trabalhadora, que acorda cada vez mais cedo e volta pra casa ainda mais tarde, se tem uma coisa que não acelerou foram os meios de transporte público, e o tempo torna-se mais um adversário diário. No entanto, repensar esses modelos acelerados de estar no mundo, que ditam nossas relações pelo consumo, pela negação do ócio (negócio), parece-me cada vez mais necessário. Poder dedicar mais tempo a viver ao invés de somente ver a vida passar não diz respeito apenas ao que designam como qualidade de vida, mas, mais que isso, é nos dar a chance de seguirmos com o tempo e não contra o tempo.

            Obrigada Sr. Alcindo por viver tanto e tão bem!!!

*Sinopse: O filme conta a história de vida do Sr. Alcindo Moreira, um importante líder espiritual Guarani, de 105 anos de idade, e de D. Rosa Poty-Dja, sua esposa, que vivem na Aldeia Yynn Moroti Werá, Terra Indígena de Biguaçu, em Santa Catarina. A inspiração do cineasta Alberto Alvares veio da admiração e respeito pelos saberes orais transmitidos por Wera tupã, o Sr. Alcindo Moreira e sua esposa Poty Dja, Dona Rosa, que são exemplos de sabedoria e espiritualidade do Povo Guarani.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Revolução Demográfica no Brasil

Charles

“Era um sistema totalmente maluco. Não é à toa que a gente virou essa sociedade com favelas, deterioração do espaço urbano e criminalidade. A gente fez de tudo para virar isso. Acho até que virou pouco.
Com tudo o que a gente fez lá atrás, é surpreendente como vivemos numa sociedade calma”.
Samuel de Abreu Pessôa, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas.

Lembro-me bem de várias características de minha infância na capital paulista. Da praça em frente a minha casa, do clima de frio acentuado no inverno, do uniforme azul da escola, da garoa. Foi na década de 1980 que vivi minha infância e desta época trago comigo uma série de lembranças marcantes. Em 1985 foi a primeira vez que vi minha mãe chorar, era a morte de Tancredo Neves, lembro-me das maquininhas de remarcação de preços, frenéticas, nos supermercados e meu pai preocupado com os preços que mudavam de um dia para o outro, era o período da hiperinflação no Brasil. Me recordo do pavor imenso que minha mãe tinha em relação a AIDS. Dentre tais lembranças que marcaram e que ainda marcam minha trajetória de vida, como esquecer os almoços na casa do Tio Efigênio, em Guaianazes-SP, eram tantos primos, tantos tios e tanta gente. Era uma casa modesta, com um quintalzinho no fundo cheio de plantações e galinhas. Mas era uma casa cheia de vida. Vida que aos domingos reunia as pessoas, a família e seus agregados.  Foi o mais próximo que estive de uma configuração de “família”, a qual nunca tive de fato. Minha família nuclear era pequena, solitária, meu pai sempre foi um tanto quanto arredio, não gostava de pessoas em nossa casa e saia pouco. Em meados da década de 1990 mudamos para as Minas Gerais e logo ocorreu o falecimento da minha genitora, tornando minha “família” ainda menor. Meu pai, meu irmão e eu. Creio estar ai o motivo de me considerarem tão seco as vezes. Eu acredito que, intrinsecamente, faltou uma grande família em minha formação. Sempre precisei de mais orientação e atenção. Irmãos mais velhos, mais comemorações de aniversário. Natal em família. É tão verdade que busco isso em outras famílias. É sério, fui até agregado, ou melhor, adotado por algumas famílias nesses vários anos. A mais significante é uma família de Belo Horizonte. A família Nascimento, da qual fazem parte o Tiago Heliodoro e a Carol que também escrevem para esse blog. Os natais da família Nascimento são tão emocionantes, tão revigorantes, tão cheios de esperança, verdadeiro natal em família. Casa cheia, presentes, presépio, orações, lágrimas.
Porém, acredito piamente que não poderei configurar uma família nesses moldes, pois não terei vários filhos. Ao contrário da família do meu pai (8 irmãos), ao contrário da família da minha mãe (4 irmãs) e ao contrário da família da minha sogra (12 irmãos). Eu não vejo, em um horizonte de tempo próximo, a menor possibilidade de ter um filho. Não acho que estou preparado. E essa preparação nada tem a ver com minha capacidade psicológica ou meu grau de responsabilidade, isso tudo já tenho. O que me falta é capacidade econômica. Dentro da minha visão de mundo, creio eu não passe nem perto da chance de possuir uma estrutura econômica que possa servir para suprir todas as necessidades de um filho a contento.
Mas engana-se quem acha que estou só, ou que estou exagerando. Essa percepção é cada vez maior no nosso país, principalmente nos centros urbanos. E também não é um costume recente ou passageiro. A diminuição no número de filhos vem se acentuando no Brasil desde a década de 1980. Foi a década de confirmação da Revolução Demográfica no Brasil.
A Revolução Demográfica brasileira tem início na década de 1930, posto que a partir desta época as taxas de mortalidade começam a cair no Brasil, devido aos avanços na medicina, ações de saúde pública e alguma melhora nos padrões de vida. Apesar disso, as famílias continuaram tendo um número elevado de filhos, com média superior a seis filhos para cada mulher até os anos 60. A combinação da queda na taxa de mortalidade com a alta taxa de fecundidade gerou um crescimento rápido da população brasileira entre os anos 40 e 60. Essa sequência de fatos ficou conhecida como “explosão demográfica brasileira”. Na década de 50 a população brasileira totalizava 51.944.397 habitantes, bem longe do resultado do último censo realizado no Brasil em 2010 onde os resultados, apontaram uma população formada por 190.732.694 pessoas. Nos últimos 50 anos houve um grande salto demográfico no território brasileiro, o país teve um aumento de aproximadamente 130 milhões de pessoas. No curto período de 1991 a 2005, a população brasileira teve um crescimento próximo a 38 milhões de indivíduos.
A transição demográfica possui um perfil padronizado, de uma forma geral, que pode ser observado em quase todos os países. Num primeiro momento você tem mortalidade alta e fecundidade alta, com crescimento populacional próximo do zero. É o caso da Europa antes da Revolução Industrial. Com o processo de urbanização, com programas de saneamento básico e saúde alcançando a maior parte da população as taxas de mortalidade começam então a cair, numa velocidade maior do que as taxas de fecundidade, o que gera um rápido aumento da população. Posteriormente cai a taxa de fecundidade e, no último momento, as duas taxas são baixas. É quando você passa a ter crescimento zero ou negativo. É nesse nível que se encontram os países considerados mais ricos, dos quais o Brasil está se aproximando.
Estudiosos da demografia no Brasil concordam que essa fase transitória da demografia é comum a quase todos os países, mas afirmam que existe uma variação na duração e nos efeitos deste período, ou seja, cada país possui características próprias dentro dessa fase de transição. O caso brasileiro, no século XX, foi muito mais rápido do que tudo que já havia acontecido anteriormente. Tomemos como exemplo a comparação entre o Brasil e a Inglaterra. O processo de transição que aqui realizamos em 40 anos, os ingleses levaram 120 anos para concluir.
Quando buscamos identificar um conjunto de razões para explicar o processo que levou a revolução demográfica no Brasil, necessariamente encontramos explicações com bases econômicas. A urbanização e as pressões com o custo de vida a partir dos anos 70 fizeram com que os casais tivessem menos filhos. Outro ponto importante para essa conjuntura é o ingresso da mulher no mercado de trabalho, com o assalariamento, inclusive no mundo rural, elas passaram a ter uma jornada fixa e com isso veio uma pressão para diminuírem o número de filhos.
Professor Titular do Departamento de Demografia da UFMG, Eduardo Rios-Neto, chama a atenção para o papel da tevê neste processo. Nos anos 90 ele participou, ao lado de outros demógrafos e cientistas sociais, de uma pesquisa que procurava analisar a influência das telenovelas no tamanho das famílias. Descobriu-se que a Rede Globo teve, pouco a pouco, um efeito de modernização da sociedade. As famílias que apareciam nas telas nunca eram grandes, ou por ser difícil escrever tramas para famílias maiores ou por ser difícil dirigir crianças. O padrão televisivo teve uma influência considerável em todas as regiões e todas as classes sociais brasileiras. A soma de tudo isso fez com que a taxa de fecundidade no Brasil caísse. Em 1980, as mulheres brasileiras ainda tinham, em média, 4,4 filhos ao longo de toda a vida. Em 1991, eram apenas 2,7 filhos. No último Censo, feito em 2010, cada mulher tinha em média 1,9, filhos, já abaixo da taxa de reposição da população que é de 2,1 filhos por mãe.
A queda na taxa de fecundidade provocou uma revolução no mercado de trabalho brasileiro. O que vemos atualmente no mercado de trabalho brasileiro contraria a lógica da oferta e da procura de mão de obra até então. Até os anos 80 tínhamos no Brasil um crescimento desordenado da população e baixo investimento na educação pública, o que acabou gerando uma mão de obra desqualificada, e que de acordo com a lógica de mercado mantinha os salários baixos. Entre as décadas de 50 e 70 no Brasil, período em que a população mais crescia, o investimento no estudante universitário era até 75 vezes maior que o investimento no estudante do ensino fundamental de escola pública. Obviamente, quem cursava ensino superior público era a elite do país (dependendo do curso ainda é), aumentando muito neste período a desigualdade social no Brasil. O Estado barrava a oportunidade de ascensão social para os pobres – pobreza reproduzindo pobreza.
Segundo o economista Samuel de Abreu Pessôa, pesquisador e professor da pós-graduação em economia da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro, essa estrutura que aumentou a desigualdade social no país produziu uma sociedade extremamente conflituosa. “Era um sistema totalmente maluco. Não é à toa que a gente virou essa sociedade com favelas, deterioração do espaço urbano e criminalidade. A gente fez de tudo para virar isso. Acho até que virou pouco. Com tudo o que a gente fez lá atrás, é surpreendente como vivemos numa sociedade calma”.
Com a queda no número de nascidos a população brasileira tende a diminuir o percentual de reposição da população gerando um número menor da parcela ativa, ou seja, de trabalhadores. Devido à diminuição do número de mão de obra os salários tendem a aumentar. Com a intensa queda do número de filhos por mulher na década de 80, o poder público conseguiu colocar a grande maioria das crianças na escola (programas como o Fundef e o Toda Criança na Escola contribuíram para alavancar os indicadores quantitativos desse nível de ensino na gestão FHC. A meta era de colocar 98% das crianças de 7 a 14 anos no ensino fundamental). No final dos anos 2000 essa geração chegou ao mercado de trabalho. Um número menor de jovens e mais bem educados, o que acaba por influenciar a oferta de trabalho no Brasil, posto que a existência de um número significativamente menor de pessoas oferecendo trabalho leva a uma perceptível dificuldade para a contratação de mão de obra, fazendo com que os empregadores valorizem mais seus funcionários. Além disso, o aumento do tempo de permanência na escola destes trabalhadores constituiu uma qualificação, mesmo que pequena, possibilitando o trabalhador o poder de negociação, de mudança. Meu pai, que só estudou até a quarta série, trabalhou na mesma empresa por 20 anos. Ele sempre torcia o nariz quando eu mudava de emprego. Esses fatos retiram um enorme poder dos ricos capitalistas, uma vez que eles precisam dar uma maior valorização aos trabalhadores, como melhorias salariais, para contratar e também manter seu quadro de funcionários. Os benefícios das mudanças geradas pela revolução demográfica são facilmente percebidos quando se observa o índice de desemprego no Brasil nas duas primeiras décadas do século XXI, uma média de 6 a 7%. Ao contrário das décadas de 80 e 90 onde a taxa de desemprego eram muito maiores.
Para além da relevância das modificações históricas que a transição demográfica causou – e continua causando – na sociedade brasileira, é importante ressaltar que o seu papel não é levado em conta como deveria, ou simplesmente não é considerado. Em parte por culpa da nossa mídia, a de maior exposição, que costuma veicular informações superficiais e unilaterais. Por outro lado pela credibilidade, demasiada, que a população dispensa aos discursos político-partidários repletos de interesses muito mais particulares do que públicos.
A revolução demográfica no Brasil coloca em questão as contribuições dos governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Entre os anos de 1990 e 1995 a parcela da população de 0 a 14 anos cresceu apena 1%, representando uma enorme queda de crescimento em relação à década anterior, e no período de 1995 a 2000 essa parcela da população teve sua taxa de crescimento negativa, começando então a diminuir. Essa estabilização no número de crianças no Brasil, no início do século XXI, contribuiu para o aumento do acesso a escola fundamental, durante os anos do governo Fernando Henrique, como já vimos. Essa mesma geração começou a entrar no mercado de trabalho dez anos mais tarde, durante o governo Lula, diminuindo, em números absolutos, a oferta de mão de obra, o que acabou por gerar uma necessária valorização dessa mão de obra por parte dos empregadores, devido a sua escassez.  Desta forma, para uma compreensão adequada das mudanças das políticas públicas nos últimos vinte anos e dos avanços sociais mais recentes no Brasil, é imprescindível entender a revolução demográfica no Brasil.
Na comemoração dos dez anos do PT no poder (02/2013), Lula anunciou a candidatura de Dilma à reeleição. “Nós não herdamos nada, nós construímos”, disse Dilma em seu discurso. No mesmo dia, o tucano Aécio Neves, discursou no Senado, segundo ele o PT desde que assumiu o poder está apenas “exaurindo a herança bendita”, que o governo Fernando Henrique lhe legou.
No centro das discussões entre PT e PSDB está o desenvolvimento dos indicadores sociais do país, o controle do desemprego e da inflação, melhora na qualidade educacional, etc.. Os dois partidos querem atribuir a si todo o processo de melhora social que o país vem passando. Os partidos deveriam reconhecer a contribuição da revolução demográfica e suas consequências, propor um debate público e aberto, e a partir deste ponto propor melhorias e aprofundamento dos pontos que já estão sendo desenvolvidos. Diante de um processo tão incisivo e que se configurou em longo prazo como a revolução demográfica no Brasil, nossos políticos discursão como verdadeiros salvadores da Pátria.

terça-feira, 12 de maio de 2015

O texto é breve, sugestivo e não tem fim

João Henrique

Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo”. É com um fragmento de fala de Michel Foucault que esse texto será tecido. E tem por objetivo ser breve, sugestivo e não concluir.
Classificar. Categorizar. Identificar. Especificar. Determinar. Catalogar. Rotular. O homem. A mulher. O negro. O branco. O heterossexual. O homossexual. O que você é? O que você faz? É preciso desconfiar de todo processo metódico que busca reunir determinadas características (observáveis ou não) e determinar o pertencimento a um grupo, classe, ordem, gênero, espécie, família. Não existe nenhuma formação concreta que não seja possível (hoje ou ao longo da história) ser modificada, transformada, alterada, multiplicada. É preciso acreditar nas falhas, nas quebras, nas fissuras, nas lascas, nos movimentos inesperados que promovem rachaduras, desmoronamentos, destruição. É preciso acreditar no entre, naquilo que está para além dos binarismos. É preciso acreditar na dobra, no movimento sem forma que produz um outro, um múltiplo, um que ainda não há. É preciso acreditar no Terceiro, naquilo que se forma no encontro de dois, de três, de muitos, de todos. Parafraseando Walt Whitman, é preciso ser grande, conter multidões.
Sugiro a diferença àquilo que determina. Sugiro o incomum. Aquilo que não sabemos dizer o que é, aquilo que estranha, pois o que estranha causa deslocamento, faz pensar (ou faz aparecer o preconceito, a violência, a ignorância). Que o diferente (de você) te aponte outras possibilidades. Te diga que nem todos são como você. Nem todos devem ser como você. Que o diferente seja não o outro, mas você. Que sejamos todos diferentes e que saibamos nos diferenciar de nós mesmos a cada dia. Que dizer quem somos seja sempre uma incógnita e que permanecer o mesmo seja sempre uma impossibilidade.
Fujamos! Fujamos da maldita regra de classificar tudo. Fujamos do absoluto, do universal, da essência, da forma, da concretude. Fujamos da impossibilidade de não ser múltiplo, da impossibilidade de criar novos modos de existência. Fujamos do fundamentalismo (e não dos fundamentalistas), do extremismo (e não dos extremistas), dos excessos, do radicalismo (e não dos radicais). Fugir e recusar esse lugar comum de submissão, ignorância, negligencia, passividade.
Abandone as verdades universais. A verdade é uma ilusão. Ser homem hoje não é como no século passado. Ser mulher hoje não é como no século passado. Homem e mulher hoje, não são os mesmo de ontem. O homem. A mulher. Não existem. Se os artigos definidos (O; A) definem, é apenas pelo fato dessa língua ser cruel, favorecer a uma dominação, ao binarismo, ao preconceito. Desconfie do sujeito imaculado. Desconfie do sujeito que se diz formado, exato, correto, concreto. No lugar da forma, use o informe. No lugar do uno, use o múltiplo. No lugar de dizer o que é, viva, seja, experimente.
Se é para ser algo, seja político no seu ato de ser. Seja político para lutar por direitos. Seja político para romper com os binarismos que geram preconceitos. Seja político para mostrar a diferença. Seja político para fazer aparecer. Que sua cor, sua orientação sexual, sua classe... sejam objetos de luta.
Nesse ponto, te pergunto: você pode ser diferente do que pensa ser? Você é um? Pensa hoje como pensava ontem? Pensar é preciso. Não me importa quem você seja. Mas importa que não permaneça o mesmo. E finalmente, que não haja fim. Nenhuma conclusão. Nenhum término. Sempre continuidades. Que o passado não seja causa de nenhum efeito presente. Que o presente não seja efeito, mas seja experiência, modos de existência, processos, experimentações.
Como anunciei, o texto foi breve, com muitas sugestões (nenhuma verdade) e nenhum ponto de partida ou ponto de chegada. Que haja entre ele e você um entre, uma lacuna, uma brecha que pode (ou não) reverberar...

terça-feira, 5 de maio de 2015

Feio é arrastar e nem perceber

Maurinho

Começo dizendo que esse texto não tem como objetivo "cagar regra" ou impor uma visão radical sobre o tema abordado, e tem como objetivo apenas fazer uma breve reflexão sobre um assunto que considero muito pertinente. Decidi escrever sobre algo que tem estado presente cada vez mais no meu dia a dia, o RAP nacional, o qual considero, antes de qualquer crítica musical, uma forma de fazer política, aliás a música no geral pode ser entendida assim. Contudo, de todos os estilos musicais talvez o rap seja a forma mais explícita de ser fazer política, porque assim como o funk ele é a voz de lugares e pessoas pouco frequentes em colunas sociais, mas muito presentes em dados estatísticos, pessoas e lugares que são problemas de carnaval a carnaval.
Hoje meu interesse pelo rap não se dá por moda, mas por me ver em muitas letras, principalmente quando estas se referem a autoestima e aos desafios enfrentados pelo negro,  sempre entre o sucesso e a lama, e comigo não é diferente. Me fascina em muitos cantores de rap o fato de escrever sobre problemas sociais em suas letras de uma forma que cientista social algum escreveria em um artigo, haja visto que gostam de favelado mais quenutela.
Por entender todo o peso e história do rap nacional uma coisa vem me incomodando, e é justamente essa ascensão do rap em proporções midiáticas. Eu até achava legal ver o Emicida na globo, e embora essa sua postura tenha sido muito criticada por muitos fãs de rap eu achava justo que um cara que já mordeucachorro por comida, e que provavelmente não deve ter tido bicicletaou video game, querer o mundo assim como o tal cidadão kane.
Mas há algumas semanas atrás eu comecei a enxergar essa questão por um outro prisma, a partir de um fato que sinceramente me incomodou muito. Quando assisti ao show do Criolo em Paris, um show muito bem produzido no que diz respeito a figurino e palco, tomado por uma plateia majoritariamente branca e elitizada e sem qualquer interesse em analisar friamente o que era cantado ali. Percebe-se que o publico era composto em sua maioria por brasileiros que moravam na França, muito diferentes “das 10 mil pessoas em uma favela na quermesse do campão” cantada pelo rapper em Sucrilhos, música essa que é um tapa na cara exatamente daquela galera que estava ali curtindo o espetáculo. Me incomodou ver uma moça curtindo a "vibe" em uma musica que dizia "As criançada aqui tão de HK" sem fazer qualquer tipo de reflexão sobre aquilo. Será que ela entendeu que a criançada tá de HK na mão? HK arma, sabe qual é? É duro imaginar que essas mensagens estão sendo jogadas no vácuo, para uma galera que “acha que ta bom, que tá umafesta”, mas e o menino no farol? Ahh esse se humilha e detesta.
Mas talvez mais duro seja ver a parcela de culpa muito significativa do próprio rapper, no caso o Criolo, que notoriamente é conivente com aquilo à medida que faz de suas músicas um produto de consumo da classe média, público que ele dedica sua obra a criticar. Quando digo que o rap que o Criolo faz é um produto com público alvo, me baseio na sua nova estética musical, arranjos bonitos, arrastados, audíveis a ouvidos mais cultos, e talvez por esse motivo não seja tão difícil ignorar que “AR15 e mato e os moleques tão de fuzil”. Mais difícil é ignorar que Deus precisa andar deblindado nas periferias paulistanas através de uma voz seca, calejada, rancorosa que não traz consigo nenhuma preparação com gargarejo ou exercícios vocais, só a raiva de cantar a desgraça que vive. 
Tudo isso me remeteu a um caso que aconteceu comigo quando uma colega de trabalho, filha de uma médica, uma coxinha ao extremo, daquelas que solta perolas do tipo "Meu cachorro é mais chique que muita gente", e que foi a um show do Criolo e voltou dizendo que precisava mudar seus conceitos. Porém, os conceitos de que ela falava não se referiam a uma visão mais humana e menos egoísta sobre problemas sociais e sim aos seus conceitos em relação a estilos musicais, porque a partir daquele show ela percebeu que o rap é bom e gostoso de ouvir, agradável até. Essa nova cara do rap presta um deserviço aos demais grupos de rap ao ponto que acabam sendo marginalizados e perdendo para essas pessoas sua legitimidade, porque o novo Criolo é tido como referência do que é rap e o Facção Central associado à musica de bandido. O Criolo doido agora é "Criolê" e não parcelou toda aquela gente indigesta no cartão, acabou fazendo deles um belo investimento à curto prazo.  Entendo que o rap faz muito mais que areligião e o cassetete usado em vão, mas ele precisa ser entendido, discutido, criticado, e nunca ter sua essência ignorada por vaidade.

terça-feira, 28 de abril de 2015

DESENHANDO OS FEMINISMOS

Mayara Mattos



Vou aproveitar o gancho do texto da Carol (http://blogterceiroopiniao.blogspot.com.br/2015/04/oamor-tem-cor-1-muitas-mulheres-negras.html) para continuar falando com as mulheres. Nas últimas semanas as notícias mais lidas e que entraram nos círculos de debates (principalmente via facebook) foram casos que envolviam violências de gênero[1].

No dia internacional da mulher (detalhe: tinha acabado de voltar do DiversaS: Feminismo, Arte e Resistência, evento de muita sororidade e força, organizado por mulheres maravilhosas), entrei numa discussãoem que um homem cis* hetero branco e de classe média alta defendia em uma postagem no Facebook que não há necessidade das mulheres se vitimizarem para alcançar seus objetivos. O post é de uma mulher branca segurando um cartaz em que ela se posiciona contra o feminismo[2]. Descobri depois que existem alguns canais de mulheres que se dizem contra o movimento e ridicularizam mulheres emancipadoras[3]. Isso não me assustou muito, pois compartilho das proposições de Paulo Freire que defendem que enquanto a educação não for realmente libertária, a tendência do oprimido é uma dia querer se tornar o opressor. Além de que, sugiro que essa resistência que algumas mulheres possuem em relação aos movimentos feministas talvez aconteça devido ao alinhamento de muitas de nós a posições delimitadamente de esquerda, o que contraria aquelas em suas posturas neo-liberais, em que a preocupação maior gira em torno de uma maior inserção da mulher no mercado de trabalho, ou seja, a uma emancipação quase exclusivamente econômica. 

Decidi escrever esse texto no intuito de esclarecer porque os feminismos (sim, no plural, pois não existe uma pauta com uma direção para o movimento e a luta é interseccional), são fundamentais nas desconstruções de processos naturalizados, como o que a Carol explicita no texto da semana passada, além de serem preponderantes na luta que visa o empoderamento feminino e contra o "cistema" sexista. Talvez, com esse tipo de reflexão fique mais fácil entender essas questões que são tão caras as feministas e muitas vezes ridicularizadas não só pelos machos alfa como também por mulheres que dizem não compartilhar da luta.

A postagem em questão não é um caso isolado, comentários que direcionam os movimentos feministas para a lógica da vitimização são constantes (passei por uma situação, poucos dias antes, envolvendo uma agressão a uma mulher que também foi desclassificada por um homem cis, afirmando não ter ocorrido machismo no caso em questão), isso ocorre até mesmo entre os revolucionários de esquerda[4] e com muito mais frequência do que se imagina. Cansei de ouvir todos os tipos de chacotas e insultos ao me posicionar como feminista, seja no sentido de desmerecer o movimento ou como simples alegoria de uma mulher que quer estar na posição de um homem, inclusive acionando o termo feminazi, que pretende alinhar às feministas a posições de intolerâncias quanto aos homens (Desculpem por não querer me submeter e ser benevolente com seu machismo, ops… nenhuma desculpa). Muitos desses comentários esboçavam um completo desconhecimento a respeito dos movimentos feministas e das diversas pautas em proposição. Assuntos de "mulheres" tendem, realmente, a serem invisibilizados, os espaços de discussão são minimizados e relegados a futilidades, e é assim que muita gente generaliza o feminismo. Os machismos diários estão nos detalhes[5].

Quando digo que a luta é interseccional, penso exatamente nas categorias que se cruzam, desenvolvendo uma postura mais voltada a questões de gênero, classe ou raça, a depender da trajetória que cada sujeitx foi traçando. É muita inocência achar que pelo fato de alguns setores da esquerda defenderem a dissolução de todos sistemas de privilégios, esses discursos serão completamente absorvidos por todas as pessoas de modo semelhante. Somente uma mulher (cis ou trans) sabe as dores que o machismo e a misoginia imputam diariamente, quem sofre as mais variadas formas de violências, nesses processos, são corpos femininos. E se levarmos em consideração o intercruzamento das categorias identitárias, os corpos de mulheres negras/indígenas e pobres estão muito mais vulneráveis aos interpostos do patriarcado. 

É por isso que me irrita profundamente o fato de homens se sentirem no direito de afirmar se uma mulher sofreu ou não machismo, e pensando por essas identidades múltiplas, o que faz um homem ou uma mulher branca achar que ele/ela sabe exatamente o que uma mulher negra e/ou pobre quer e/ou precisa ou como ela deveria viver? Pra quem nunca sofreu racismo, machismo, homofobia (lembrando que isso pode acontecer tudo junto) nem qualquer outro tipo de segregação/opressão, nunca vai saber o que é estar na posição do oprimido, mesmo quem adere aos movimentos e se dizem progressistas ainda não podem se colocar nesse lugar, a fala do negro/da mulher/e qualquer grupo em situação de desigualdade deve ser sempre respeitada. Homens brancos tendem a querer pautar qualquer discussão como se fossem sempre especialistas, pois acostumaram a serem legitimados e autorizados em se posicionar com muita facilidade no lugar dos "outros".

Iniciei esse texto expondo os recentes casos de violência de gênero, as quais poderíamos incluir (infelizmente) uma longa lista, inclusive o caso hediondo de agressão sofrida por Verônica Bolina[6], trans torturada e exposta a grande humilhação por agentes estatais. Fatos menos chocantes, mas não menos violentos, como o caso de um professor de direito da PUC[7] que afirmou em sala de aula que "leis e mulheres foram feitas pra serem violadas" também demonstram a enorme defasagem que a falta de discussão em termos colocados pelos feminismos pode causar.

Machismo, lesbofobia, transfobia, sexismo… tudo isso mata. Feminismo empodera mulheres, constrói relações mais horizontais, discute e tenta proporcionar uma dinâmica de vida que contemple as especificidades femininas, respeitando a diversidade e desconstruindo normatizações que só servem aos interesses do Estado patriarcal. Por isso, convido quem não conhece ou não leu o suficiente a respeito, que se informe a partir dos textos sugeridos (ou por meio de outros também) e se abram para espaços mais inclusivos de discussão e autonomia. Que aprendam a dividir privilégios, não monopolizando suas categorias apenas para interesses que o satisfaçam, que se juntem às mulheres, não para falar sobre elas, mas para construir com elas, respeitando seus lugares de falas e atentando a possíveis opressões que podem ocorrer nas diferentes relações cotidianas.

Assim, "seguiremos em luta até que todas sejamos livres!"  


* O alinhamento cis envolve um sentimento interno de congruência entre seu corpo(morfologia) e seu gênero, dentro de uma lógica onde o conjunto de performances é percebido como coerente. Em suma, é a pessoa que foi designada “homem” ou “mulher”, se sente bem com isso e é percebida e tratada socialmente (medicamente, juridicamente, politicamente) como tal.