- Êpa, essa viagem foi muito rápida! - Tô com muito calor! Essa roupa laranja é um inferno. - C viu? Quase morreu. Foi um grande estouro. - Os portões da escolha foi aberto. Saiu um monte de gente de uma vez. Encavalou. - Frita pastel e coxinha Rute. - Vô leva esse pilantra no pau! Zé subiu no andaime. Maria chegou na casa de Andreia para cuidar do Pedrinho. Raimundo acabou desistindo de faltar ao trabalho. Laura faltou e comprou um atestado na praça 7. Ninguém aqui é vítima. Ninguém aqui sou eu.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Sem avanços e com direito a retrocesso

   Mayara

"A tarefa de uma política democrática não é eliminar as paixões ou relegá-las à esfera privada para possibilitar um consenso racional, mas mobilizar essas paixões e colocá-las em cena segundo dispositivos agonísticos que favorecerão a respeito do pluralismo. Em lugar de representar um perigo para a democracia, o enfrentamento agonístico na verdade é sua própria condição de existência."  Chantal Mouffe.


Depois de um dia exausto de expressão da democracia, os eleitores devem ter se sentido desobrigados politicamente pelo menos até o dia 26 de Outubro, quando ocorrerá o segundo turno de uma eleição bizarra (não que as outras tenham sido menos absurdas, mas é que essa me chocou um pouco mais).

Para esclarecer, nunca saí de casa para votar, não acredito no sistema político da forma que ele opera, e penso política de modo muito mais abrangente do que simplesmente votar. Principalmente porque essa lógica do menos pior me irrita tremendamente, a governamentabilidade e seus reflexos não me asseguram qualquer confiança em escolher alguém, nem mesmo a Luciana Genro.

É fato que o perigo da direita nos ronda temerosamente, e isso também me assusta, mas me faz perceber porque a democracia é um sistema ultrapassado e falho. Aécio não deveria ser opção nem em Cláudio, no entanto ele desponta como grande possibilidade de mudança para o país (nos meus termos, leia-se regressão). Os argumentos pelos quais alguns defendem essa postura me chocam, seja simplesmente por quererem um país sem os petralhas, ou por achar que o PSDB sempre foi melhor opção, o que me horroriza nisso é o completo esvaziamento político dos motivos pelos quais as pessoas escolhem um candidato. Ou se pautam na simpatia, como se política fosse um relacionamento em que você investe naquele que mais tem afinidade, ou tratam a corrida eleitoral como uma corrida de cavalos, e apostam em quem está ganhando. Esquece-se que existem pessoas que são diretamente influenciadas pelas demandas políticas dos candidatos. Que o digam os grupos historicamente subalternizados (índios, negros, mulheres, etc.), sofrendo na pele o reflexo de uma política feita na base da intolerância argumentativa.

Enfim, a reflexão não é suscitada, não se possui um posicionamento crítico quanto a outros possíveis modos de fazer e atuar politicamente, ou pelo menos quanto às propostas dos candidatos em pauta, o que se tem é muita paixão em jogo. Veste-se a camisa de um candidato como se fosse futebol, falta diálogo para mostrar que política se faz com argumentos e discussões. No entanto, continuamos reproduzindo a ideia de que futebol, religião e política não se discute. MENTIRA, esses assuntos devem entrar sim nas agendas de discussão, e não só nas eleições, mas principalmente num cotidiano cheio de motivos para isso. Se fosse assim, perceberíamos realmente de quem é a culpa quando esperamos por horas um busão que passa lotado, quando as áreas de aglomerado urbano se destacam na paisagem, quando gente morre diariamente na fila do SUS, os exemplos podem ser infinitos…

Assim, a constatação do provérbio se fortalece por muita gente achar que uma essência ronda o seu ser, o que não permite que elas mudem de opinião. Afinal, opinião cada um tem a sua e ponto final. É como se não fosse possível trocar experiências, como se numa discussão não fosse plausível considerar os argumentos dos outros como uma forma de repensar e refletir suas próprias ideias. O problema não diz respeito a emitir opinião, prática que se consolidou muito bem na era midiática, haja vista a ferramenta dos comentários disponível em qualquer portal da internet. O que quero apontar é um estranho particularismo ao possuir um determinado ponto de vista sobre um assunto. As pessoas tendem a não querer dialogar sobre assuntos "polêmicos", pois se assustam com a possibilidade de mudarem de ideia, ou de simplesmente terem que repensar suas convicções. Ninguém quer assumir seu potencial racista, homofóbico ou classista, quando uma discussão toma esses rumos as pessoas são incapazes de escutar argumentos que demonstrem como suas atitudes e discursos seguem por essa lógica. Preferem se esconder em posturas ignorantes e não dialógicas ou por trás de frases desoladoras como: "até tenho amigos gays" (podem ser negros também).

Essa apatia política compensada no direito democrático ao voto é a responsável por uma realidade sem expectativa de mudanças reais, pois independentemente de quem ganhar nessas eleições (os bossais do congresso tão aí para consolidar isso), sei exatamente quem perderá. Não desconsidero que com Aécio as coisas serão muito piores, é o que a direita faz de melhor: fuder a vida dos pobres em nome do bem da nação. No entanto, essa situação de confinamento político deveria, no mínimo, ensejar uma discussão política de como as atuais possibilidades de exercer a cidadania são enclausuradoras, sobre como não é mais viável continuar defendendo um sistema político baseado em diretrizes coloniais.

Por outro lado, se alguns defendem que o PT, representado presidencialmente pela Dilma, é a melhor opção, quando não há outra opção, eu prefiro continuar atuando politicamente de outras maneiras. Não suporto a ideia de defender um governo genocida, o pior para as populações indígenas desde a redemocratização, sendo as comunidades e povos tradicionais os mais afetados com os projetos desenvolvimentistas petistas. Sem contar a política de extermínio da juventude negra que se consolida diariamente e a repressão e o estado de sítio criados durante a copa. Ou seja, esse governo insiste em reproduzir os ideais neo-liberiais, e não sou obrigada a compactuar com isso. 

Acredito em micropolítica (atuações pontuais em determinados espaços de convivência e luta coletiva) e empoderamento popular e vou continuar atuando politicamente por essas esferas de poder. Defender o menos pior não é opção pra mim, isso na verdade é derrotismo. Essa macro política que não exprime a realidade local de comunidades que não podem ser vistas sob a lógica de potenciais trabalhadores/consumidores, como os petistas em sua maioria defendem sua guinada política, não me representa. O que quero dizer é que não acho justo apoiar uma pessoa e/ou partido que não contempla minha luta (nem de longe) simplesmente porque o outro lado (e sei disso) é ainda mais obscuro e problemático. É como se colocassem uma arma na minha cabeça e eu tivesse que escolher entre ser estuprada ou morta (a correlação é pesada, mas satisfaz meus sentimentos nesse momento). Vou defender sempre uma terceira via, não me reduzo às imposições desse sistema, e se eles dizem que só existem duas opções, eu digo que lutarei nas ruas, e diariamente tomarei posturas para que nenhum dos dois governe.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Variações sobre o tempo: do o uso que ele faz de nós


João Henrique

Em O tempo, de Salvador Dali, temos uma representação de como o tempo é flácido, líquido, moldável: horas e minutos diluídos no próprio tempo. Os relógios escorregam em meio a uma paisagem sombria, desértica. Até mesmo no meio do nada o tempo se vai. O tempo se vai a todo momento. Tempo para trabalhar, para estudar, para namorar, para casar, para cuidar dos filhos, para escrever, pra isso para aquilo. Tempo pra tudo (ou tempo para nada), mas junto às voltas do tempo esfacela-se o ser. Não somos mais do que trabalhadores do tempo. Nos sujeitamos a ele e ele, por sua vez, nos impõe cada vez mais ação com cada vez menos voltas dos ponteiros.
Nos dias atuais, dos usos que o tempo faz de nós, falta-nos tempo para ser. É inconcebível um momento em que se pare para ser o que se é, pois somos o que fazemos; e fazer se insere na lógica do tempo. Compomos uma engrenagem cujo os trabalhadores e os instrumentos de trabalho somos nós mesmo e a cada feito que se vai na esteira de produção, vai também uma parte de nós. O tempo nos dita o que produzir e o mesmo tempo nos “desproduz”. O não fazer existe para os que não são. É patológico (o tempo nos ensina) o não fazer algo. Como pode você, tão jovem, não trabalhar? Como pode dormir até tarde? Como pode ficar assistindo filme? Não tem algo para fazer? Não tem nada para fazer? Como se o tempo fosse universal e o próprio tempo ditasse o uso que fazemos dele. 
De tudo você me diz: “mas há como resistir a isso”. “Nos divertimos. Saímos para beber como os amigos. Tiramos férias, etc”. Não quero ser pessimista. Há sim como resistir, mas penso que não estamos fazendo do modo correto. Contudo, também não sei dizer qual é o modo correto. Embora eu saiba, ou melhor, eu aposte, na ideia de que a fuga do tempo está nos encontros genuínos consigo mesmo e com o outro. Mas, até isso o tempo nos roubou. Outro dia, nesse tempo, saí com uns amigos e de repente um amigo, não muito interessado no assunto do grupo, vira pra mim e diz: “pega seu celular aí, vamos conversar”. Esse tempo nos tirou os encontros genuínos. “Pega o computador aí, vai trabalhar”. “Pega o livro aí, vai estudar”. “Pega a ferramenta aí, vai fazer”. “Pega, vai, pega”. O que não pode é ficar sem. Você é o que faz! Mas, sobre isso, sobre o que você faz, o que isso tem feito de você? Viciado em trabalho. Pai ausente. Estudante que não se enturma. Funcionário estressado. Mãe que não dá carinho. Que tipo de sujeito tem sido produzido pelo uso que você faz do seu tempo? Que tipo de uso tem permitido que o tempo faça de você?

Das roças que me habitam, lembro-me de quando a tardezinha, todos se assentavam à beira da fogueira (sem celular, sem internet, sem trabalho) para contar histórias e cantarolar. Éramos nós fazendo uso do tempo. Perdemos o bom senso. E a crítica diante da liquidez dos relógios, não fazemos mais. Os nós que nos ligavam não existem mais, cederam lugar às tecnologias, à produção, ao dinheiro... enfim, fizemos do tempo, que se vai em meio ao nada, o nosso próprio tempo. Fundimo-nos aos relógios que se esvaia no deserto. E, não satisfeitos, desejamos mais tempo para gastar do modo como temos feito. Não é tempo que queremos. É preciso entender que há tempo, o suficiente para ser. O que precisamos é usá-lo em nosso favor. Não falta-nos tempo! Se queremos tempo é para lidar com os nossos excessos.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Por uma Virada

Tiago

Neste último fim de semana, como bom belo horizontino estudante da UFMG, eu estive na segunda virada cultural da cidade. Não fui à primeira virada, ocorrida no ano passado, e estava curioso para conhecer o evento, copiado da cidade de São Paulo.
Noite de sábado, centrão cheio, movimentado, o clima estava bom. Gentes de muitos (não de todos) lugares caminhando por aí, a esmo ou na direção de alguma atração previamente selecionada. Ocupada, lotada, ao sabor da cerveja, do vinho ou da catuaba, a cidade desmarcava encontros, inventava desencontros. Estava viva, boa.
A programação da virada era extensa, variada, contava com artes de quase todas as formas. Teatro, música, cinema, exposições, enfim, Cultura – de forma geral, com C maiúsculo mesmo. No âmbito musical, sambistas, roqueiros, amantes da MPB, do rap, e de Tom Zé foram considerados.
            Não fui a muitos lugares. Esperando dar uma olhada no Toquinho, passei com alguns amigos no parque municipal. Decepção. Um dos lugares mais importantes da cidade de Belo Horizonte tinha o tráfego controlado naquela noite, a entrada era possível apenas por duas portarias, e todos os que ali queriam entrar eram submetidos à revista dos seguranças. Lá dentro, nada de vendedores ambulantes, apenas cervejas e comidas autorizadas – assim como as pessoas.
Estive no Rap, debaixo do viaduto Santa Tereza; fui ao show do Tom Zé, na avenida guaicurus; no ótimo Samba da Meia Noite; na Noite Cubana da praça sete; e já de madrugada voltei ao parque, haveria show de “Todos os Caetanos do mundo”. Não conhecia a banda, nem seu público. A banda era boa, porém, nenhuma novidade, os caetanos contemplados eram os mesmos de sempre.
            Caminhando por estes lugares tive a mesma impressão que tenho do carnaval belo-horizontino e de boa parte dos eventos que ocorrem na região central de Belo Horizonte, de que “a Virada” também é majoritariamente branca. Feita (pela e) para a classe média da cidade. Sua programação recebe principalmente atrações “Culturais”.
Admito que minha crítica não é exatamente aprofundada. Como já disse, eu não estive em todos os lugares, não estou por dentro dos melindres que envolvem a produção destes eventos, e por isso mesmo quero registrar que ouvi de uma amiga que a virada deste ano abriu espaços a apresentações de grupos independentes. Para ela, nesse sentido há um notável avanço em relação ao ano passado. O que gostei de ouvir. Entretanto, mesmo não tendo ido ao evento do ano passado, não temo dizer que o movimento foi insuficiente.
            Sua programação segue pautada por uma ideia de alta cultura, o que pode ser visto na escolha dos shows, sem nenhum grupo de Pagode, Axé ou Funk. Assim como nos lugares escolhidos para receber alguns eventos, Palácio das Artes, Praça da Liberdade, Academia Mineira de Letras, Sesc Paladium, Parque Municipal.
Além disso, brinca-se pouco com a cidade. Penso que um evento desse porte é uma ótima oportunidade para diminuir distâncias, desconstruir estereótipos, arriscar outros usos de seus espaços e equipamentos. Por que não retirar os carros do grande centro, alocar atrações também em áreas da cidade consideradas distantes, valorizando seus moradores e promovendo a circulação, a possibilidades de novas experiências, novos encontros. Metrô e ônibus gratuitos poderiam promover o acesso à uma virada (verdadeiramente) cultural e (efetivamente) Da Cidade.
Outra possibilidade seria aproveitar eventos que já ocorrem normalmente na cidade e integra-lo ao circuito da virada, como o Baile Funk das quadras da Vilarinho, que poderia ter uma edição gratuita no fim de semana da virada. Ônibus gratuitos partiriam de vários lugares, atendendo os que estivessem dispostos a conhecê-lo. De outro modo, por que não colocar ônibus gratuitos no sentido contrário, promovendo o acesso ao circuito cultural da praça da liberdade (outra cultura com C maiúsculo), partindo sobretudo dos lugares mais distantes.

            Acho a virada uma excelente ideia. Torço para que seja valorizada e que continue a existir. Afinal, para uma cidade que há pouco tempo lutava pelo direito de usar a praça da estação, um evento como este é fantástico. Contudo, para uma Virada efetivamente Da Cidade, muito mais gente ainda precisa ser convidada pra essa festa.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

E assim a gente segue dignamente

Maria Augusta Oliveira

        
        Começo com aquela velha história que se repete todos os dias e com um João, como também poderia ser uma Maria, que se refletem em muitos rostos, gostos, medos, anseios, amores e desamores por aí. E tudo começa às 5 da matina, ou até bem mais cedo em alguns casos, quando o nosso João, ou a Maria, acordam, tomam seu café com pão, às vezes seco e sem a manteiga que está em falta, já pensando no tempo que vão perder com a condução até o trabalho. Essa história não é sobre a falta da manteiga, do bife, da cervejinha no fim de semana, nem da prestação atrasada do aluguel ou da geladeira nova, nem do trabalho em si, mas da construção do que a gente chama de dignidade própria, sua, minha, do João e da Maria no meio desse rolo todo.

Somos colocados nesse padrão de vida, nessa noção do progresso e desenvolvimento pessoal, na grande maioria das vezes por falta de oportunidade, que segue a mesma lógica da evolução biológica que vemos nas aulas de biologia desde crianças, ou seja, a ideia de que o ser humano nasce, cresce, reproduz, envelhece e depois morre. E o que acontece nessa selva desordenada em que vivemos, numa tentativa de ordem, é mais ou menos isso, nascemos, somos sustentados pelos pais, depois vem o direito à educação, princípio básico para se atingir a etapa mais “importante”, que é um trabalho no futuro, para sustentar a si próprio, seus vícios, e a família a se constituir, repetindo tudo de novo.

Mas o ponto é que nem sempre temos essa tal de oportunidade que vai nos levar a fazer um curso universitário, ou mesmo terminar o ensino básico, porque a etapa do trabalho parece mais urgente. Não pra se sustentar após uma emancipação, mas pra ajudar na casa dos pais ou pra criar o filho que acabou vindo antes de terminar os estudos, o que seria a etapa precedente nessa escala imaginária. Mas como bem sabemos, na prática, na vida real, cheia de suor, gosto amargo de fome na boca, desgostos e desavenças, não é bem assim que funciona.

No fim, o João e a Maria acabaram em um emprego que por um lado é visto pelo “outro” como uma forma fácil de manter onde sempre esteve, ou de decair. Como é a realidade do que pode ser chamado de subemprego, por exemplo, o cara que limpa para-brisa ou vende bala no sinal, ou também o caso da emprega doméstica, do pedreiro, do operário. O que fica no imaginário desse “outro” que está de fora, que sempre teve mais oportunidades, é que toda condição vista como abaixo da sua seria consequência da falta de esforço, da falta de mérito, associando o que se faz da vida, o trabalho, ao status da pessoa. Nesse sentido, quanto mais intelectual, quanto menos físico, mais valorizado o trabalho é considerado. Mas o que fica de fora dessa reflexão é a importância fundamental que todos esses trabalhos ditos mais físicos têm pra manutenção dessa ordem que o fulano cheio de oportunidades preza, pois está bem colocado e não quer perder seu lugar. 

Por outro lado, temos o olhar de quem está de dentro da coisa toda, que, aliás, começa bem cedo, na escola. O próprio sistema educacional é estruturado pra excluir ao querer decidir qual é o conhecimento válido a ser passado, e principalmente quando avalia a todos, pessoas formadas por um complexo imenso de diversidades, da mesma maneira. Aquele que não se sai bem está fora, e aprende a se ver como aquele que não merece estar incluído por falta de mérito. Sair do padrão é não ser considerado pela diferença, é não ser considerado por algo que tem de melhor em outros termos, é estar fora, fora do mundo das oportunidades. 

       Então, abre-se espaço para o discurso da dignidade, “tá ruim, mas pelo menos não tô matando, nem roubando.” O lugar ocupado pelo João e pela Maria, o estar preso no cada vez mais cotidiano, na realidade que se repete, em prol da busca pelo sustento de todo dia e do sonho de sossego num futuro distante é o continuar continuando, o empurrar com a barriga pra poder comer, pagar o aluguel, pagar a prestação da televisão que só dá pra assistir no fim do dia ou no fim de semana.  É o lugar que a falta de oportunidade coloca e não permite saída, mas que é justificado, e até mesmo aceito, pela ideia da vida digna. É o lugar que a dignidade ajuda a não se contestar.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Bar do Centro

            Tudo começa num bar. O mesmo bar de sempre. Aquele que ainda usa toalhas de plástico sobre as mesas quadradas e amarelas, cujas cadeiras são postas sobre outras, quebradas, cujo dono conhece todos os clientes e esconde, por trás dos bigodes de morsa, a frustração de amores não vividos. Tudo começa nesse bar.
            A memória de uma juventude desperdiçada, as escolhas mal feitas, os risos sem motivo, paixões que esquecemos. Quando refazemos esses anos nosso esquecimento é sempre mais importante do que a lembrança. Criamos essa importância nos diálogos; passamos mais tempo debatendo o que não é claro do que os acontecimentos indiscutíveis em seu registro oral.
            É mais do que uma tentativa de remontar um passado perdido para nós. É uma forma de mantermos a dúvida em aberto. Recriamos o tempo perdido através de suas lacunas; apesar delas; por causa delas. Tampouco o esquecimento se deve à embriaguez. Nos esquecemos da sobriedade antes de esquecer o porre.
            Ou seja, somos produtos do esquecimento consciente. Disso e do bar. Aquele bar de sempre.

            É quase um ritual de iniciação na vida adulta ser aceito naquele antro mal acomodado de lugares confortavelmente incômodos. O barulho irreconhecível de conversa fútil das mesas ao redor. O torresmo seco do centro da cidade. O sabor amargo da cerveja gelada e o cheiro doce de pinga artesanal. Tudo isso é simbólico para a vida adulta: não cresce aquele que não aprende o prazer de se sentar nas mesas amarelas, de tomar a cerveja barata, a pinga da roça, o torresmo.
            Não cresce porque essas coisas todas reúnem uma miríade de pessoas e idéias, nos faz perder na universalidade do valor humano. Porque, se há um lugar que reúna boa parte das diversas tribos sociais, é esse bar no coração da cidade. Onde você bebe não sob o som de samba e bossa nova, mas do ronco dos motores de ônibus, as sirenes estridentes, o martelar sobre chapas de alumínio, o passo incessante dos pedestres. Isso sim constituí na verdadeira experiência urbana.
           
            Portanto, repito: nossa vida, como parte de um mosaico urbano de idéias, de emoções, contradições e contravenções que começa num bar que não é qualquer bar, mas se repete em todas as cidades e muitas vezes em uma mesma cidade. Esse bar.

            Os primeiros amores doídos, traço daí. Não o amor, mas a dor. A rejeição tardia - mas esperada. A decepção com os outros e consigo mesmo que só pode surgir no ebulir de sentimentos diversos entre pessoas diversas. O caos: pai de todas as inconsistências, todas as diversidades.
            Do caos, dessa quebra de pensamento, vem o crescimento inexorável - e doído - do caráter humano. E é isso o que personifica toda a experiência social que desejamos, de todo esquecer. Não pelo fato esquecido em si, mas pela inconsitência dos fatos, pela contradição de experiências que podemos tirar da mesma: a dúvida sobre a memória inexata deixa em aberto a interpretação e, dessa forma, cada um aprende à sua maneira as lições que precisa.
            Dessa forma eu digo: não se pode confiar em pessoas que não se sentem (em cadeiras, à vontade) nesse bar. Porque nunca foram vítimas de um confronto direto e decisivo de idéias. Direto porque nada atenta mais ao entendimento pessoa sobre a filosofia do que se ver diante de um rosto expressando idéias contrárias. Um rosto, um par de olhos, uma boca. Não um ideal semântico que pode ser defletido com a distância acadêmica. Definitivo porque esse contato direto  com alguém que crê em algo diferente é irreversível. No sentido em que não se mata uma pessoa com a mesma facilidade com que se recusa uma idéia distante, de um autor que nunca encontramos e temos dificuldade em lembrar mesmo o nome.

            Sentar no bar (esse bar mesmo) é um ato de se colocar em contato com algo maior que a experiência pessoal: é a máxima do viver em sociedade, tolerar e aprender com as pessoas diferentes que se encontra por ali. Não é qualquer bar. É o bar do centro, que atraí gente de todo tipo. Esse é o que vale a pena.

terça-feira, 29 de julho de 2014

GAZA




O mundo em que vivemos hoje é o mundo da velocidade. Boa parcela desta velocidade é fruto do desenvolvimento tecnológico conquistado pela humanidade, fundamentalmente nos últimos dois séculos. Pessoas, mercadorias e informações circulam numa velocidade tão grande que compreender o que ocorre no mundo se torna uma tarefa cada dia mais árdua.

Sabemos, por graça dos milhares de satélites que orbitam sobre nossas cabeças, quase em tempo real, sobre o tufão que arrasa alguma ilha do caribe, sobre o tsunami que varre a Indonésia, sobre a bomba que explode no metrô de Londres, sobre as torres nova-iorquinas que desabam e matam milhares de pessoas, ou ainda sobre o filho do príncipe que acaba de soltar seu primeiro peido real. 

Tudo se tornou muito pior, certamente. Aumentar tanto assim a velocidade da vida traz benefícios para muito poucos. Talvez para uma lógica empresarial, numa época em que somos compelidos a consumir cada vez mais, aumentar a velocidade da linha de produção seja algo bastante vantajoso. 

Para nós, toda essa velocidade e esse desarranjo em relação ao tempo das coisas certamente provoca graves prejuízos. A filósofa Olgária Mattos deu entrevista a alguns anos em que refletiu sobre o tempo em nossa sociedade, e em certa altura da entrevista ela diz o seguinte: “Essa idéia de que você não tem tempo é a forma mais perversa da alienação. Marx já dizia isso, a forma mais perversa não é a alienação do trabalhador com relação ao produto do seu trabalho e ao sentido do trabalho, é a alienação do tempo, você não ser senhor do seu tempo, você é determinado pelo tempo das coisas e não escolhe mais a sua vida. É o que está acontecendo hoje”. (disponível em http://www.notaderodape.com.br/2009/05/entrevista-epreciso-reconquistar-o.html acessado em 28/07/2014).  
 
Dito isso, gostaria de refletir sobre o impacto deste ritmo atroz na nossa capacidade de compreender certos acontecimentos que nos rondam. Na mesma velocidade que uma notícia é veiculada na mídia, ela simplesmente desaparece de nossas vistas para dar lugar a outra tragédia ou catástrofe ao redor do mundo.

Se ontem os meios de comunicação só tinham espaço para informações sobre a Copa da Fifa, hoje só se fala da crise na Ucrânia e do Massacre promovido por Israel na Faixa de Gaza. Ontem no Fantástico (domingo, 24/07/2014) foram exibidas imagens exclusivas (odeio essa expressão, principalmente quando se trata de uma questão tão séria como este conflito) dos mísseis israelenses destruindo alvos civis na Faixa de Gaza. O contrário não foi exibido, porque quase todos sabemos da desproporcionalidade das forças envolvidas neste conflito. 

O problema que precisa ser discutido passa pela velocidade como o assunto é tratado. A superficialidade da cobertura midiática encontra seu ponto de apoio no ritmo alucinante dos fluxos de notícias. Quando paramos para tomar fôlego e refletimos um pouco, temos a oportunidade de ver o quanto esta superficialidade se encontra atrelada à parcialidade das coberturas dos grandes meios de comunicação.

É o tripé do sucesso. Superficialidade – Velocidade – Parcialidade, não necessariamente nesta mesma ordem. Quem puxar um pouquinho na memória (se a memória estiver ruim pode puxar na internet, que pra isso funciona muito bem) vai se lembrar da ofensiva israelense contra a Faixa de Gaza em 2009. E irá se lembrar que este mesmo exército que hoje massacra escolas e abrigos de refugiados, utilizou bombas incendiárias contra uma população completamente desamparada pelos organismos internacionais e pelos países que mais se dizem os defensores da democracia e da paz. (Aliás, os mesmos que se omitem agora). 

Não sou nenhum cientista política, analista de conjuntura internacional, diplomata ou coisa que o valha. Sou somente um cara, que vê de forma cíclica o Estado de Israel massacrar os Palestinos através de um exército ultra potente que é abastecido principalmente com armas alemãs. (quem diria hein!!!). 

Alguém poderia me dizer a causa de ataques tão violentos? Será mesmo que alguém se esquece de que soldados israelenses são flagrados quase que rotineiramente espancando brutalmente jovens e crianças palestinas? E quem nunca ouviu que estas ofensivas cíclicas ocorrem única e exclusivamente com a finalidade de ocupar a Faixa de Gaza para instalação de colônias de israelenses? 

O problema é que não há debate por causa da velocidade. Amanhã começa um novo conflito e a TV e os jornais passam a transmiti-lo ao vivo para todo o mundo, e aí o conflito entre israelenses e palestinos volta a ser notícia somente daqui a alguns meses, quando se deflagra nova onda de horror. 

Este tempo fugaz, em que a reflexão séria e minimamente imparcial vira piada na boca de babacas estúpidos de shows de stand up´s, reduz tudo a um espetáculo de horror que não permite nem mesmo que as pessoas sintam culpa pelas besteiras que falam, ou pelos partidos que tomam. E tomam muitas vezes de forma irrefletida, já que não há mais tempo pra nada, porque acabou o Jornal Nacional e vai começar a nova novela das nove, que no meu tempo, era a novela das oito.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

outsiders

Mayra

Desvio de luta,
quanta conduta,
a regra se fez,
por quem se desfez,
a sarjeta chegou,
a polícia parou,
a mulher não viu,
o negro se despiu,
a luz se foi embora,
e em uma outra aurora
se desenvolveu.
O limite acordado
por patrões com carro importado,
veio o juiz,
a ponte está por um triz,
e a porta abriu
para quem contraiu
à regra, puta que pariu!
Foi feita por quem?
Foi escrita pra quem?
Descrita por alguém?
O espaço é sem margem
pra quem é feito de imagem,
e o estuprador tem sua lei,
o homossexual não quer ser rei,
o negro é igual ao branco, eu sei,
a mulher que eu beijei.
E a norma que tem forma
de carrasco embriagado,
deixa-me tonta, obrigada,
e eu quero despir a farda,
quero saber quem é dono da espada,
quero saber quem é que fala,
o que a gente cala.
O desvio é desviado,
por um pobre coitado
que nem sabe ler.
E aquele que sabe,
faz charme,
suave se resolve a sós,
como quem desfaz os nós
que a sociedade alinhou.
E ainda chamam de louco
todo e qualquer pouco,
estatisticamente rotulado,
por um postulado
de colarinho branco
e alma nada franca.
Se a loucura acaba com a lucidez,
louca quero ser,
para compreender,
que não é justo
seguir conceitos,
pautados em pré-conceitos,
orgulho e falta de fé.
Caminho com um pé
que é pra deixar o outro cru
e nu,
sem sapato,
porque a tão formosa lei,
desvia a si própria,
com um capital que gira
para o pouco
que acha muito
ser normal.

terça-feira, 15 de julho de 2014

Sobre reis e príncipes




Mayara Mattos

         Seguindo a ordem da dinastia Bourbon na Espanha um jovem príncipe assume o trono após a abdicação do rei que já não possuía condições de governar. Em meio aos plebeus, as carruagens reais passavam, rearranjo dos títulos da nobreza e dos gloriosos benefícios eram necessários para se instaurar a nova governança. O futuro rei era aclamado por uma multidão calorosa, festas eram realizadas em homenagem a esse grande evento e todos os holofotes estavam direcionados a família real, que é a expressão de Deus na terra.
            Essa história poderia estar situada num passado longínquo, mas ocorreu em junho de 2014. Felipe VI de Bourbon subiu ao trono espanhol devido a escândalos que envolvia corrupção e tráfico de influência dentro da sua própria família, o que se agravou com a crise econômica que insiste em assolar o país. Porém, esse histórico foi abafado pela imprensa espanhola que veiculava insistentemente os atributos de majestade do novo rei. Esportista, falante fluente de várias línguas, marido fiel e pai de duas lindas garotas, alto, loiro, de olhos azuis e educado nos principais centros de ensino do mundo (como todo bom nobre), Felipe VI era evocado como a salvação de um governo imerso em graves problemas políticos. Até mesmo a copa das tropas que ocorria no Brasil foi esquecida pela imprensa espanhola, a coroação era o foco de toda a imprensa.
            É comum que se pense nos meios de comunicação dos países ditos desenvolvidos, como veículos comprometidos com a informação e circulação livre de ideias que abrange o público como um todo, e em que a liberdade de expressão é plenamente respeitada. Esse é mais um dos mitos que se reproduz, a imagem da Europa e dos EUA como blocos homogêneos de democracia inegável, economia exemplar e onde tudo funciona perfeitamente bem, isso desemboca na falácia de uma plenitude social, política e econômica que seria o padrão a ser seguido pelos subdesenvolvidos da cadeia de dominação.
            Esses países colonizadores (do passado ao presente) comandam as estratégias econômicas e oferecem modelos de prosperidade, tipo o consumo em massa expresso pelo seu melhor cúmplice, o capitalismo. Assim, minha intenção aqui é de desestabilizar representações dadas como absolutas e questionar nossas ações que refletem a possibilidade única de existência oferecida pelo eixo consagrado do mundo.
            O ideal de que esses países seguiram um caminho unilinear do desenvolvimento, o qual desembocou no estado de bem estar social pleno e democracia perfeita, é o que impulsiona os países com o rótulo de emergente a prosseguirem com sua caminhada fatídica. E a imprensa tem um papel fundamental nessa trama, muitas vezes ela nega ou obscurece as formas de imperialismo dos países modelos ou qualquer outro evento que seja contrário a expectativa (ex. espionagem), focando, normalmente, nos indicadores do desenvolvimento, PIB e IDH, para que os legitimem como detentores da ordem e do progresso, os quais corremos cegamente atrás. Nega-se, portanto, a reflexão de quais foram as condições criadas pelos países consagrados pelo desenvolvimento para estarem no ápice da pirâmide criadas por eles mesmos. Parece que se prefere deixar nos livros de história, nem todos muito comprometidos com a boa qualidade na informação, as respostas a esses questionamentos. Pois, deixa-se de conectar o suposto apogeu dos países exploradores com a colonização brutal empreendida pelos mesmos, naturalizando a linha evolutiva do desenvolvimento em que todos os outros países estão passando, ou pelo menos deviam.
            Assim, quando se tenta encontrar uma explicação para os nossos "atrasos" (de novo a ideia da corrida rumo a um ponto de chegada), aciona-se o fato de termos sido colonizados e não de termos colonizado. Desse modo, legitima-se a necessidade de explorar o "outro", seja ele representado por grupos fora do território nacional ou pela grande massa marginalizada, como pobres, pretos, indígenas e imigrantes. O Brasil tomou lições de modo exemplar, a nossa classe dominante, fruto da elite colonial, tende a explorar nossos vizinhos latino americanos que se encontram em situações econômicas menos favoráveis. Além de empreender constantes desrespeitos constitucionais em face dos sujeitos considerados entraves ao desenvolvimento tanto almejado, vide as mazelas das populações ameríndias.

            Esses massacres diários, mascarados e justificados por expressões bem estruturadas no imaginário popular, como bem da nação, progresso e ordem, têm seu impacto diminuído nos olhares daqueles que não conseguem conceber outros modos de existência, a não ser aquele legitimado pelo circuito colonial. O modelo de desenvolvimento, intrínseco na nossa visão de mundo, não nos permite admitir a fuga dos valores impregnados pela lógica da dominação, acabamos por reproduzir o caminho empreendido pelos nobres e racionais conquistadores, custe o que custar.