- Êpa, essa viagem foi muito rápida! - Tô com muito calor! Essa roupa laranja é um inferno. - C viu? Quase morreu. Foi um grande estouro. - Os portões da escolha foi aberto. Saiu um monte de gente de uma vez. Encavalou. - Frita pastel e coxinha Rute. - Vô leva esse pilantra no pau! Zé subiu no andaime. Maria chegou na casa de Andreia para cuidar do Pedrinho. Raimundo acabou desistindo de faltar ao trabalho. Laura faltou e comprou um atestado na praça 7. Ninguém aqui é vítima. Ninguém aqui sou eu.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Histórias de colonização e povos indígenas

Gustavo Jardel Coelho




Do genocídio. "Que culpa tem Cabral?", perguntou Raul, ironicamente. Doenças, estupros, assassinatos, no mínimo. Ou exploração, com a ambiguidade que cabe à palavra, dos povos "sem fé, sem lei, sem rei". Quaisquer coincidências do passado no presente são meras semelhanças? O "descobrimento" do "novo" mundo pela Europa pode ser compreendido como um marco para a modernidade ocidental, assim como a invasão consequente deve ser compreendida como uma marca da colonialidade moderna por aqui. Não apenas no corpo, mas na mente também. Por exemplo, a nomeação do espaço como projeção do futuro de uns, de Américo a "América", e a nomeação do tempo como negação do passado de outros, de Colombo a "pré-colombiano", de Cabral a "pré-cabralino". A linguagem dos colonizadores parte de si, "os vencedores", para criar um mundo "novo", ainda que velho, e ignorante, ainda que conveniente. E, como se uma ditadura colonial de mais de quinhentos anos não bastasse, espectros de outra ditadura, mais explícita e mais nacional, vêm emergindo, recentemente: notícias de tal Relatório Figueiredo denunciam certo genocídio generalizado, entre os anos de 1940 e 1970, realizado graças aos empreendimentos de colonização das fronteiras nacionais, como a construção de rodovias, entre outras, durante a ditadura civil e militar brasileira instalada pelo golpe de 1964. Relatos de matanças, torturas, escravizações, violências naturalizadas nas frentes civilizatórias dos postos indígenas do SPI (Serviço de Proteção aos Índios), antigo órgão oficial de indigenismo, anterior à FUNAI (Fundação Nacional do Índio). Reflexos do colonialismo imperialista de outrora, cujo fim era a "evolução", no neocolonialismo nacionalista contemporâneo, cujo fim é o "desenvolvimento". E rastros de ditaduras que acusam que jamais fomos democráticos, como a usina hidrelétrica de Belo Monte, por exemplo: um projeto dos anos de chumbo, o anúncio de uma catástrofe socioambiental e, atualmente, reativado pelo governo federal, a pretensão de um dos maiores projetos do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), ou, como o anarcofunk carioca critica bem, "Processo de Aceleração de Chacinas".

Do suicídio. Se "o ato de colonizar está na mente", o fato ("feito") de ser colonizado também. O estabelecimento de desigualdades e o exercício de discriminação não violentam apenas de forma física, mas também simbólica: a hierarquização e a inferiorização das diferenças é sentida e pensada no corpo, na mente e na alma. Desde Oriximiná, no Pará, até São João das Missões, em Minas, e alhures, há inúmeros casos de suicídio de pessoas indígenas. As motivações são diversas, mas, em geral, atreladas às pressões externas em relação às questões identitárias, étnicas e raciais, territoriais, fundiárias, entre outras, que tornam a morte uma alternativa à vida de carência e sofrimento material e espiritual impostos aos povos indígenas. A propriedade (privada), racionalizada pelo capitalismo, institucionalizada pelo Estado, foi e ainda é um instrumento de expropriação e negação do direito a uma das possessões mais fundamentais dos povos indígenas: a terra. Desterritorializados, os povos indígenas são alheados de seus meios de reprodução física e simbólica e, assim, são desafiados ao limite da resistência. O que houve (e ainda há) com o povo Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, pode ser compreendido como um exemplo crítico disso: invadidos e privados, historicamente, de seus territórios, cercados e pressionados por fazendeiros, surpreendidos por ataques de pistoleiros, estigmatizados pela população envolvente, o povo indígena se encontrou numa situação colonial de suicídio induzido, ele foi "suicidado" pela promiscuidade entre o capitalismo e o Estado, que emitiu uma ordem de reintegração de posse da terra aos fazendeiros em 2012. O povo Guarani Kaiowá, em meio a homicídios e estupros por pistoleiros e suicídios de jovens indígenas, endereçou, finalmente, uma carta ao governo do Estado e à Justiça Federal, solicitando que sua morte coletiva fosse decretada. Uma vez que sua terra era seu território ancestral, onde seus antepassados foram enterrados, o povo Guarani Kaiowá, desacreditado da justiça do governo, preferiu se suicidar, coletivamente, e ser enterrado ali, ao invés de ser expulso de seu lugar. Como um parente quilombola já falou: "Nós não somos tradicionais, parados no tempo, atrasados como os brancos falam, não. Mas se ser moderno é morar em lugar nenhum e em todo lugar ao mesmo tempo, tirando os outros do lugar, então, nós não somos modernos também, não!".


Do etnocídio. "Não fosse Cabral", para continuar com Raul, talvez o Brasil nem existisse. Nem o Pará, nem as Minas, nem o Mato Grosso do Sul, nem o Rio de Janeiro. E se não há espaço para os povos indígenas na floresta, nem no campo, há muito menos na cidade, lar da civilização do Ocidente moderno, centro do poder do Estado, sede das empresas do Mercado. Se não fosse Cabral, não haveria desocupação da Aldeia Maracanã do antigo Museu do Índio. Pedro, Sérgio e a estrutura histórica por trás e por cima dos Cabrais. Filho da mesma ilustração humanista que pariu a Ciência e seus pactos de verdade, o direito (democrático), burocratizado pelo Estado, é hesitante entre a verdade de uns e de outros. A política do Patrimônio, embasada na ideia de propriedade, vem se tratando de um colonialismo institucionalizado, assim como outros, e fez da Aldeia Maracanã um jogo assimétrico de poder entre o Estado-Mercado, detentor de um braço armado, militarizado, e as pessoas indígenas que reivindicavam e ainda reivindicam o prédio como seu lugar na cidade carioca. Graças a mais uma intervenção europeia na história (neo)colonial do Brasil, a FIFA e sua Copa do Mundo, o governo do estado do Rio de Janeiro desocupou, violentamente, com auxílio da Polícia Militar, o prédio do antigo Museu do Índio, ocupado por indígenas da Aldeia Maracanã. O prédio seria demolido para fins de modernização do entorno do estádio do Maracanã. Com a reação de indígenas, indigenistas, ativistas, entre outros, o governo do Rio voltou atrás, mas com a proposta de criar ali um Museu do Futebol. Descaso com a apropriação indígena do prédio, negação de sua diferente possessão da cidade, etnocídio. Apenas depois de muito debate, embate e combate, o prédio foi assegurado para a Aldeia Maracanã. No entanto, sob condições tutelares: o novo projeto de ocupação indígena do prédio deve ser e vem sendo feito em cooperação com o Estado. Ao fim e ao cabo, parafraseando, livremente, Awamirim Tupinambá, do Santuário dos Pajés, em Brasília, "empreendimento econômico é eufemismo para invasão, colonização e violência". A tradição do Ocidente moderno é marcada por uma colonialidade: uma negação e uma dizimação das diferenças, um processo violento de etnocídio e genocídio. Em tempos de ataques diretos aos direitos indígenas, se "abrir mão da palavra é entregá-la ao inimigo", então, que estigma se torne emblema e que nos juntemos ao coro da Mobilização Nacional Indígena porque "a gente vira indígena ou vira indigente".




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