- Êpa, essa viagem foi muito rápida! - Tô com muito calor! Essa roupa laranja é um inferno. - C viu? Quase morreu. Foi um grande estouro. - Os portões da escolha foi aberto. Saiu um monte de gente de uma vez. Encavalou. - Frita pastel e coxinha Rute. - Vô leva esse pilantra no pau! Zé subiu no andaime. Maria chegou na casa de Andreia para cuidar do Pedrinho. Raimundo acabou desistindo de faltar ao trabalho. Laura faltou e comprou um atestado na praça 7. Ninguém aqui é vítima. Ninguém aqui sou eu.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Se o cabelo é meu, deixa eu cachear, deixa eu...

Caroline Louise



Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida...”Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Clarice Lispector - A Descoberta do Mundo

O modo de me relacionar com as pessoas e comigo mesma sempre esteve de alguma maneira ligado à forma como eu enxergava e desejava que o meu cabelo fosse. Alisei o cabelo pela primeira vez aos 7 anos e minha mãe conta que fiquei tão feliz que até disse que aquele era o dia mais feliz da minha vida, desde então nunca mais parei de alisá-lo e sempre queria que ficasse o mais liso possível. Curiosamente foi também mais ou menos nessa época que no jardim de infância disse a uma coleguinha que ela não poderia brincar comigo porque ela era preta. Lembro exatamente da carinha dela e das trancinhas que ela usava no cabelo crespo. O ocorrido não foi uma inocente maldade infantil, eu provavelmente estava reproduzindo algo que havia vivenciado em outro lugar, e ali na escola talvez tenha me sentido superior a ela por ser “mais clarinha” e não ter o cabelo tão crespo. E mais do que isso, não havia identificação, não conseguia ver naquela menina negra do cabelo crespo alguém igual a mim; eu me via diferente e melhor do que ela.

Passei mais de 20 anos acreditando que minha vida seria mais fácil se meu cabelo fosse liso, sempre imaginei que a vida poderia ser diferente por causa disso, eu seria mais feliz, mais amada, mais desejada, seria bonita, e principalmente, seria livre! A verdade é que nunca me enxerguei como negra, não era uma negação consciente e explícita, era muito mais perverso do que isso, porque eu não fazia parte do “padrão” hegemônico e também não aceitava minha verdadeira condição, e vivia nessa fronteira, nesse lugar nenhum que só me trouxe esvaziamento e angústia.

Desde 2012 que venho desejando diminuir o uso da química, mas não levava a idéia a diante e tinha também a minha formatura no curso de Direito, e, claro, meu cabelo deveria estar o mais comprido e liso possível para a data. Me formei, e no stress de recém-formada tinha receio de que o cabelo natural pudesse ser uma dificuldade a mais no exercício da profissão, e com isso ia construído vários argumentos que me impediam de iniciar a famosa transição capilar.

Ao completar 26 anos iniciei um processo de (des)construção, me vi quase que obrigada a condição de encarar a mim mesma e minha identidade seja ela qual fosse. Muito se fala da crise dos 30 anos, mas a minha começou mesmo foi aos 26. E como qualquer crise, essa não se deu da noite pro dia, foi construída e recalcada durante longos anos nos quais por falta de coragem, eu nunca ousei encarar e assumir as conseqüências do que eu poderia me tornar ao experimentar ser o que realmente sou. Era chegado o tempo de travessia, movimento necessário para que não acomodasse à margem de mim mesma.

Só agora, aos 26 anos, me dei conta de que sou negra e da responsabilidade política que isso me traz. Cheguei a um ponto em que a vida havia tomado um rumo que não era meu, nada fazia sentido e não sabia o que fazer. Eu precisava mudar, e para que isso ocorresse de modo profundo deveria se dar naquilo que me era mais caro e que mais me incomodava: meu cabelo.

Não cortei o cabelo inicialmente, mas passei a usá-lo cacheado, o que era difícil não somente pelo processo mas porque depois de tanta química o cabelo já não sabia a sua constituição natural, e também porque não estava acostumada a sair de casa daquele jeito. Antes de sair ficava me olhando no espelho e tentando me convencer de que eu estava bonita. Foram uns três meses saindo de casa me achando horrorosa, todos os olhares em minha direção me fazia pensar que eram olhares de reprovação e a minha vontade era voltar pra casa correndo ou me fazer de invisível ali mesmo no meio da rua. Mas mesmo com esses sentimentos eu estava disposta a ir até o final na minha decisão, aquilo era não só necessário na reconstrução da minha identidade e auto-estima como também uma necessidade política.

No dia em que resolvi cortar de vez a parte lisa do cabelo e deixá-lo todo natural acho que foi o meu maior ato de coragem na vida, estava dando adeus ao cabelo alisado e me entregando ao desconhecido. Um desconhecido que me era assustador, não queria usar o cabelo black e nunca havia usado o cabelo tão curto, mas era necessário passar por isso. Nesse dia, cheguei em casa e fiquei horas me olhando no espelho e tentando entender quem era aquela pessoa ali refletida. Havia em mim uma sensação nunca antes experimentada, era eu mas não era eu, era como se pela primeira vez eu me visse verdadeiramente, sem projeções e sem o desejo de ser diferente, queria apenas ser aquilo que eu era e me aceitar assim.

Desde então tem sido um esforço diário de aceitação e de descoberta. Apesar dos elogios, ainda me sinto insegura em relação à minha imagem, mas não é uma insegurança com desejo de mudança, é uma insegurança de quem está aprendendo algo novo e precisa de um tempo para assimilar as coisas. Ainda tenho momentos em que me acho horrorosa, mas duram cada vez menos, assim como cada dia mais me importo menos com os olhares na rua. Acho bacana quando meninas me param para perguntar sobre o meu cabelo e de como fiz a transição, sinto que meu objetivo político está fazendo efeito.

A vida ainda não tomou o rumo que eu quero, não me sinto tão dona de mim o quanto gostaria, mas (a vida) ficou mais leve quando passei a buscar por um “eu” que estava perdido e sufocado pelo medo e por padrões que nós são impostos socialmente. “O que a vida quer da gente é coragem”, e isso me soa como um mantra desde que decidi mudar o meu cabelo e a mim mesma. É um caminho sem volta, não sei se continuarei caminhando por ele, mas sei que não voltarei a ser o que era antes.

Se o caminho é meu, deixa eu caminhar, deixa eu

Se o cabelo é meu, deixa eu cachear.



Caroline Louise 
e-mail: carolinelouise3@gmail.com





terça-feira, 17 de junho de 2014

Dois pesos e duas medidas!

Kelli Oliveira

Ao visitar a página do Diário de Pernambuco, no mês de fevereiro deste ano, algo me chamou a atenção. Ao publicar certa matéria nas redes sociais, a repercussão negativa tomou proporção tão estrondosa que o próprio veículo precisou criar uma campanha contra o preconceito. A matéria abordava o hábito que alguns adolescentes e crianças de periferia têm de pintar o cabelo durante o carnaval para participar das festividades. Já que os mesmos não têm condições de comprar fantasias para a época, utilizam produtos de baixo custo, como papel crepom, água oxigenada e pó de madeira, a ideia é ficar o mais diferente possível para se destacar em meio à multidão. Destaque que aconteceu de forma controvérsia, pois apesar de intencionados em apenas se divertir, esses jovens ganharam rótulos discriminatórios.

Os cabelos coloridos de meninos negros, pobres e favelados incomodaram, e muito, à algumas pessoas. Surgiram vários comentários preconceituosos após a publicação da matéria nas redes sociais, descobrindo e escancarando situações que muitos desses meninos vivem no dia a dia, rótulos e adjetivos que tristemente já se acostumaram a receber.  Ao perceber a euforia desses seres, que do conforto de suas casas sentem-se superiores e seguros para expor o que realmente pensam e sentem sobre os cabelos coloridos dos favelados, me senti imensamente incomodada e ao mesmo tempo intrigada com a repercussão negativa da reportagem. Na mesma semana em que li essa matéria, uma senhora sentada em um ponto de ônibus na Savassi (bairro nobre de BH), ao avistar um menino branco, bem vestido e de cabelo azul, balbuciou: Nossa! Esses jovens de hoje em dia são tão “estilosos” (isso em tom de elogio). Logo me veio à memória aquela matéria que tanto repercutiu e gerou comentários maliciosos, uns diziam que eram marginais, outros que era falta de serviço e, em resumo, quase todos os comentários eram negativos, nenhum mencionava que os meninos tinham estilo ou que aquilo era algo legal de se copiar.

Sei que não podemos generalizar nenhuma das duas reações, nem os comentários maldosos na rede social e nem da senhorinha que achou lindo o menino branco de cabelo azul, mas o que me veio à mente, comparando as duas situações, foi a seguinte frase, e que ilustra bem a situação: “Somos todos iguais, alguns mais iguais que os outros.” De um lado meninos negros, pobres e favelados com cabelos amarelos, vermelhos, roxos, quase sendo crucificados por não ter vergonha do seu estilo ou por tentar ter um estilo próprio. Do outro um menino branco de cabelo azul que ao passar na rua conquista admiração e apoio até dos mais conservadores. Minha indignação ascende nesse ponto: porque os cabelos coloridos dos meninos negros foram tão discriminados, ou, seria apenas o cabelo que incomodava?

Essa atitude se estende para além de comentários preconceituosos em redes sociais. Jovens negros, de periferia e com cabelos coloridos, não conseguem arrumar emprego, tomam geral da polícia todos os dias e são sempre considerados suspeitos. A vontade da sociedade é manter ou colocar todos nos padrões brancos. Eles nos engolem todos os dias, riem da nossa cara, é como se dissessem para um menino negro: já que você não pode ser branco, pelo menos se comporte como um, corte esse cabelo duro, se vista como tal, fale como tal, enfim, seja um preto transvestido de branco, assim poderemos nos incomodar menos com sua presença.

Aos mais incrédulos, que pensam que estamos vendo chifre na cabeça de cavalo, eu peço que se atenham e percebam os olhares sobre os negros ao seu redor, e não me diga que isso é coisa da minha cabeça! Parece até que estou chovendo no molhado, né, minha gente, pois presenciamos situações desse tipo todos os dias, nos jornais, nas novelas e ao vivo e à cores, mas parece que não dão a mínima para o que acontece a nossa volta. Até hoje vivemos um regime de soberania branca, e o pior de tudo é que está tão naturalizado que as pessoas acham comum certos tipos de discriminação. É isso mesmo, senhoras e senhores, os pensamentos preconceituosos de nossa sociedade proíbem que negros e pobres possam se quer pensar em ser autônomos e donos dos seus próprios narizes ou cabelos, se acharem melhor.

Ah, quem dirá que estou sendo radical demais e que muita coisa tem mudado!? Sim, tem mudado e é sabido que os negros têm conquistado muitos diretos e oportunidades, mas ainda é pouco diante do buraco que deixaram na vida de nossos ancestrais.  Precisamos ter ciência de que esse fato não foi e não será um fato isolado, enquanto um grupo tentar impor seu modo de viver nós nunca poderemos ser nós mesmos.

Como diria Chico César: Se eu quero colorir, deixa!


Fiquem atentos, as portas das percepções estão abertas!

terça-feira, 10 de junho de 2014

Incômodos Virtuais

Felipe Lena


Que vida estamos levando? Quais tipos de relações estamos construindo? Num mundo com as redes sociais cada vez mais presentes na nossa vida cotidiana, o ser humano continua a expressar sua podridão de maneira contundente. Fico me perguntando, tentando observar como as pessoas se portam no ambiente público e no ambiente privado. Na rede social (ambiente público) a pessoa fala para centenas de pessoas (amigos, família, conhecidos, colegas de trabalho, etc.). Nesse aspecto, a rede social funciona como um palco e um microfone diante de uma plateia amorfa e heterogênea. Um traço que me salta aos olhos diante do comportamento das pessoas nas redes sociais é que de alguma maneira elas não veem nenhum problema em desabafarem, fazerem confissões, esbravejarem suas verdades, falarem dos seus sentimentos mais íntimos para sua plateia pessoal. Na verdade, parece que existe uma necessidade crônica das pessoas afirmarem quem elas são e o quanto o estilo de vida delas é superior, dentre outras coisas do tipo. Não sei se isso vem de um narcisismo crônico da nossa geração ou se é simplesmente a podridão humana sendo explicitada. O curioso é que não encontro esses mesmos comportamentos no ambiente privado. Quando encontramos as pessoas na vida real, elas parecem não se expressarem da mesma maneira que no ambiente virtual. Existe um descompasso aí.  Ao mesmo tempo as redes sociais me fazem sentir o tempo pesar... Entra ano e sai ano e as pessoas, de forma quase hipnótica, festejam e celebram as mesmas datas comemorativas que o calendário virtual avisa. Me lembra Sísifo empurrando a rocha morro acima e depois rolando-a morro abaixo. Qual o propósito disso tudo? Lembro-me de quando era mais novo, quando via pessoas sentadas na porta de casa, jogando conversa fora, descansando ao ar livre depois de um dia cansativo de trabalho. Via crianças na rua jogando bola, soltando papagaio, brincando de polícia e ladrão. Hoje em dia só vejo carros nas ruas. E as pessoas parecem zumbis com o celular o tempo inteiro na mão. Fico me perguntando: quais serão os reflexos desses comportamentos virtuais e reais nas próximas gerações. Qual futuro nos aguarda? Sou pessimista nesse aspecto. Não vejo o mundo melhorando. Acho que o mundo como está precisa entrar em colapso. Reformas não mudam muita coisa, rupturas sim. Porém, infelizmente, acho que estamos completamente imersos neste modo de vida, e não vejo como rupturas acontecerem no meu tempo de vida. É engraçado pois o nosso tempo de vida é muito curto, e mesmo assim não saímos do nosso caminho para transformar as coisas, estamos conformados. Continuamos vivendo nossas vidas patéticas, vivendo a ilusão de que estamos mudando as coisas. Talvez, no fim das contas, o ser humano só precise de ilusões.