- Êpa, essa viagem foi muito rápida! - Tô com muito calor! Essa roupa laranja é um inferno. - C viu? Quase morreu. Foi um grande estouro. - Os portões da escolha foi aberto. Saiu um monte de gente de uma vez. Encavalou. - Frita pastel e coxinha Rute. - Vô leva esse pilantra no pau! Zé subiu no andaime. Maria chegou na casa de Andreia para cuidar do Pedrinho. Raimundo acabou desistindo de faltar ao trabalho. Laura faltou e comprou um atestado na praça 7. Ninguém aqui é vítima. Ninguém aqui sou eu.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

O AMOR TEM COR?[1]

                                                                                                               


Muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco ou nenhum amor. Essa é uma de nossas verdades privadas que raramente é discutida em público. Essa realidade é tão dolorosa que as mulheres negras raramente falam abertamente sobre isso.  Bell Hooks


                                                                     
Um pouco antes de passar pelo processo de transição capilar, [contei sobre isso aqui: http://blogterceiroopiniao.blogspot.com.br/2014/06/se-o-cabelo-e-meu-deixa-eu-cachear.html] passei por um período no qual eu buscava ler estudos e blogs que tratassem de assuntos sobre a questão da consciência identitária da mulher negra e sua relação com o cabelo. Acontece que em uma dessas buscas acabei me deparando com uma temática que me intrigou muito e da qual eu nunca havia me questionado: “o mercado matrimonial da mulher negra e a decorrente solidão afetivo-sexual”[2].

Li diversos relatos de mulheres negras, de diferentes classes e capital cultural, e todas traziam uma narrativa muito parecida no que concerne aos relacionamentos afetivos. A narrativa dessas mulheres me fez perceber que muitas das situações vividas por elas eram parecidas com as minhas. Foi um choque me deparar com isso. Eu não sabia (e ainda não sei) como lidar com aquilo (isso). Por um lado, eu estranhava o porquê de nunca ter me questionado sobre isso, por outro, passei a reviver em memória toda minha vida afetiva com outro olhar, um olhar menos iludido e menos naturalizado. E fazer isso foi e ainda é muito doloroso pra mim, porque de repente passei a perceber que diversas situações vividas e não-vividas talvez estivessem relacionadas com a cor da minha pele.

Tenho 27 anos e nunca namorei. Nunca havia passado pela minha cabeça que ser uma mulher negra pudesse ser um fator relevante para justificar essa minha condição, mas hoje penso que o fato de eu ser uma ‘garota estranha’ (essa era uma das minhas justificativas), talvez não seja o único fator determinante na dificuldade de manter um relacionamento afetivo.

Minha vida amorosa é marcada por uma infinidade de amores platônicos, sempre marcados por expectativas dentro de uma lógica onde nada é realmente impossível enquanto nada é possível. Meu primeiro amor do jardim de infância já era um prenúncio do que seria minha [não] vida afetiva. No primeiro dia de aula eu me apaixonei por um menino da sala, morria de amores pelo tal Rodolfo, mas ele gostava e vivia atrás de outras duas meninas da turma, gêmeas, branquinhas, bonitinhas do cabelo perfeito. A adolescência foi terrível, durante todo o meu período escolar eu nunca fiquei com alguém da minha escola. A verdade é que nunca me senti bonita e muito menos desejada por nenhum dos meninos da escola. Alisava meu cabelo numa tentativa frustrada de me encaixar em um padrão de beleza feminina, mas mesmo assim eu não era a garota “escolhida”. Eu era a amiga, o “brother”, servia de ponte entre minhas amigas e seus pretendentes, era o cupido que agilizava os encontros, e só. Eu, sendo magra, tímida e tida por alguns como ‘cdf’, não me enquadrava nem no perverso esteriótipo da negra sexual. Eu era quase que invisível.[3]

A minha vida acadêmica não foi muito diferente disso, cursei Direito em uma Faculdade particular, no período da tarde. Se eu não era objeto de desejo de garotos adolescentes em uma escola pública, imagina num ambiente como esse? E assim foi sendo construída [?] minha vida afetiva [?] durante todos esses anos. A solidão sempre foi algo presente.

Há pouco mais de um ano passei a usar o meu cabelo natural, está sendo uma mudança não apenas externa, tenho repensado muito sobre minha auto-estima e identidade. Estou num processo árduo de tomada de consciência de mim mesma e da maneira como me relaciono com as pessoas. De modo geral, posso dizer que a resposta tem sido positiva em relação a minha imagem, me sinto mais bonita e recebo mais elogios. Já não me sinto tão invisível ao desejo masculino. Mas ainda assim continuo sem vislumbrar qualquer perspectiva de um relacionamento duradouro. Quando conheço alguém é impossível não pensar nas implicações e dificuldades de um relacionamento inter-racial, impossível não cogitar a ideia de que provavelmente não serei preferência na escolha de um cara que queira um ‘relacionamento sério’.

É evidente que essa dificuldade afetiva não se restringe apenas ao âmbito racial, ela se mistura a questão de classe, ambas questões estão intimamente imbricadas[4]. Nos ambientes que costumo frequentar não encontro muitas pessoas negras, principalmente mulheres negras.[5] Sei do meu lugar ‘privilegiado’, sou advogada, estou terminando minha segunda graduação e apesar de não ter um sentimento de pertencimento de classe com a classe média, estou ciente de que compartilho com ela, em certa medida, um capital cultural. Compartilho inclusive um ideal de homem para me relacionar, confesso que nunca tive o homem negro como objeto de desejo, e o inverso também é verdadeiro, geralmente homens negros tem preferência por mulheres brancas[6].

Você pode estar se questionando: “ah, mas isso é questão de gosto, de preferências, não tem nada a ver com a cor da pele.” Bourdieu, um sociólogo francês, diz em seus estudos que a ideologia mais bem sucedida é aquela que não precisa de palavras, ela se dissemina de maneira opaca e invisível. Desde a infância, através do aprendizado, cada um de nós é formado de maneiras diversas e imperceptíveis. Somos ensinados, desde a infância mais remota, a formar julgamentos sobre o mundo que nos cerca, nossas noções de belo, feio, perigoso, do que devemos gostar e do que não devemos gostar. Além da escola, a televisão, os amigos, as pessoas com quem nos relacionamos, enfim, tudo o que nos cerca contribui para nossa formação pessoal, para a formação do que chamamos de nosso “gosto”.

Forma-se nosso habitus, ou seja, uma certa forma de relacionar com o mundo, com as pessoas, e com as coisas. Um jeito de mexer, de agir, de classificar, de avaliar o mundo, de fazer escolhas quase que sem pensar, naturalmente. O gosto se manifesta nesse sentido, como um senso de distinção. É assim na construção de uma estética da mulher ideal para se ter um relacionamento[7]: mulher branca para o casamento, a mulata para o sexo e a negra para o trabalho.

Conversando com uma amiga sobre nossa dificuldade de relacionamento fixos, em certo momento ela me disse “eu sei que por mais que eu estude, crie minha independência, dificilmente vou me casar, tenho consciência de que nunca serei suficientemente boa como uma mulher branca nessas mesmas condições.” Foi com muita tristeza que ouvi essas palavras, porque no final das contas parece que é isso mesmo, passei anos da minha vida tentando entender o que havia de errado comigo, questionando como que outras garotas nem tão bonitas e nem tão interessantes tinham tanta facilidade em se relacionar.

O amor tem cor? Sim, o amor tem cor, uma vez que, sistematicamente as mulheres negras são preteridas por homens negros e brancos na escolha de parceiras para um relacionamento afetivo. É preciso dar visibilidade a essas questões, somente assim podemos iniciar um processo de modificação de práticas tão naturalizadas em nosso cotidiano.

Empoderamento afetivo, auto-estima e representatividade são importantes instrumentos para lidar com a solidão afetiva, seriam talvez uma forma de transformar a solidão e a dor em liberdade... [ou quem sabe em amor?]


Caroline Louise 
e-mail: carolinelouise3@gmail.com







  


 [1]  De acordo com o Censo 2010, 52,89% das mulheres negras estão solteiras, 24,88% estão casadas e 2,60% divorciadas. O mesmo Censo aponta que as mulheres negras são as que menos se casam e as mais propensas ao “celibato definitivo”.

[2] Dentre os estudos que trata a questão afetivo-sexual da mulher negra destaco a dissertação de mestrado de Claudete Alves “A solidão da mulher negra- sua subjetividade e seu preterimento pelo homem negro na cidade de São Paulo”; e a tese de Ana Pacheco “Branca para casar, mulata para f..., negra para trabalhar: escolhas afetivas e significados de solidão entre mulheres negras em Salvador, Bahia

[3] “Nunca namorei no colégio, e pra mim isso era normal”: https://www.youtube.com/watch?v=VQVbXk39iKE

[4]  É comum nos relatos das mulheres negras o fato de que muitas, para conseguir um relacionamento fixo acabam se relacionando com parceiros de grau de escolaridade menor que o delas.

[5] Os negros que encontro nos lugares em que freqüento, geralmente são empregados. Não é difícil me encontrar em situações acadêmicas, restaurantes e até festas em que sou a única negra. É assustador.

[6] Alguns estudos, e até mesmo algumas mulheres apontam que o homem negro de melhor condição social prefere a mulher branca. O trabalho da Claudete Alves, mostra que é incorreta essa afirmação, uma vez que, sua pesquisa demonstrou que o homem negro tem preferência pela mulher branca independente de qual seja sua classe social.

[7] Existe também o machismo que estabelece as “mulheres pra casar”, sendo a mulher branca também vitima dessa prática. Porém, no caso da mulher negra, seu corpo é apenas um objeto, não há divisões desse tipo, mulher negra não é mulher para casar.








  












Um comentário:

  1. Que texto lindo Carol, fiquei muito pensativa com suas declarações… Essas discussões já permearam debates que defendi exatamente o que vc está dizendo, as preferências em consolidar relacionamentos passa sim por nossas construções sociais do desejo e de quem está apto a ser desejado. Muito interessante os dados que vc apresenta, vale muito a pena continuar a pautar essa discussão.

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