- Êpa, essa viagem foi muito rápida! - Tô com muito calor! Essa roupa laranja é um inferno. - C viu? Quase morreu. Foi um grande estouro. - Os portões da escolha foi aberto. Saiu um monte de gente de uma vez. Encavalou. - Frita pastel e coxinha Rute. - Vô leva esse pilantra no pau! Zé subiu no andaime. Maria chegou na casa de Andreia para cuidar do Pedrinho. Raimundo acabou desistindo de faltar ao trabalho. Laura faltou e comprou um atestado na praça 7. Ninguém aqui é vítima. Ninguém aqui sou eu.

terça-feira, 16 de junho de 2015

A Possibilidade de Ser Livre

Caroline Teixeira

Há um tempo me propus a escrever para o blog de alguns amigos, entretanto, como é comum hoje em dia, adiei a escrita impreterivelmente. Temas surgiram e desapareceram sem serem escritos. Quando enfim, descobri o que gostaria de escrever para o blog, tinha de tratar justamente desse eterno adiamento tão presente no nosso dia-a-dia. Tive a sorte de estudar um filósofo que trata disso, mas não apenas disso, da melhor forma possível, Kierkegaard. Sendo assim, resolvi, partindo de Kierkegaard, no seu livro: “O Conceito de Angústia”, tratar de questões do nosso dia-a-dia, em primeira pessoa.
Sou estudante de filosofia, no quinto período, na UFMG; tenho 21 anos e um mundo de possibilidades pela frente. Ter opções de escolha é incrível, mas o que fazer para tomar a decisão correta? O que me garante que escolhi a melhor opção? Nada! Não há garantias! Fazer filosofia pode ter sido uma boa escolha, assim como posso “quebrar a cara” monumentalmente. Mas é preciso decidir, e de/cisão implica uma cisão, um rompimento, com as demais opções. Por isso escolher é tão difícil, por isso é cada vez mais comum nos depararmos com pessoas estagnadas em suas vidas, contemplando seu mundo de possibilidades sem nada escolher; sem efetivamente viver. Parecemos ter nos esquecido que “quebrar a cara” faz parte da vida, que precisamos aprender a lidar com o sofrimento, ao invés de evitá-lo nos trancando em nosso mundinho (#selfie), onde acreditamos ter controle sobre a situação.
Passando para o campo afetivo, entre muitas coisas que Kierkegaard diz da mesma teoria, e com as quais eu concordo, ele deixa claro que não existe A Pessoa, uma alma gêmea. Isso porque eu não sou tão especial assim, e ninguém é tão especial assim para mim previamente. O que nos torna especiais para as pessoas é a história que construímos juntos. Obviamente fui rever todas as minhas relações, e pude constatar que as pessoas que eu amo, são pessoas com as quais eu construí uma história, no caso da minha família é uma história imposta mas ainda assim, com todos os problemas e as dificuldades de convivência, nos amamos. Meus amigos de longa data, a mesma coisa.
Bem, isso me ajudou a entender porque eu gosto cada vez menos de relações casuais. Sempre me pareceu vazio, e vazio é a palavra (Tinder e afins*). Quando transo com uma pessoa e isso não significa absolutamente nada além de um instante de prazer, daí um mês eu já não lembro qual foi a sensação de ter estado com aquela pessoa, o que acho péssimo. Me sentir indiferente faz com que eu me sinta vazia e o vazio angustia. O problema é que hoje em dia é bem difícil achar pessoas que signifiquem algo, da mesma forma que é difícil significar algo para alguém, e quando as encontramos, não são pessoas dispostas a tentar construir alguma coisa, muito menos uma história.
Atualmente não consigo ficar com uma pessoa para depois termos de correr um do outro para não nos apegarmos, e perguntei-me por um segundo: Qual é o meu problema? O problema não está no fato de querer mais do que instantes de prazer, o problema está em achar que, seguindo a conduta dos filmes, novelas e romances contemporâneos, existe uma pessoa perfeita para mim, a qual eu preciso ter sorte de encontrar, e que, uma vez encontrada, não devo perder nunca mais, ou terei perdido minha única oportunidade de ser feliz. Como Kierkegaard demonstra, o especial está na história construída, logo, não se trata de encontrar A Pessoa, mas sim, alguém disposta a tentar construir uma história com você, o amor vêm como uma consequência dessa história, e basta pensarmos nas pessoas que amamos para darmos razão a ele.
No fim, a gente não se lembra de instantes, de momentos de alegria; nos lembramos das histórias, das pessoas que se fizeram importar. Pessoas que fizeram questão de participar das nossas vidas e que permitiram que participássemos das delas. Os instantes são bons, mas acabam assim que começam.

“O presente não é, entretanto, um conceito do tempo, a não ser justamente como algo infinitamente vazio de conteúdo, o que por sua vez, corresponde ao desaparecer infinito.”
(…)
 “O eterno, pelo contrário, é o presente.” (kierkegaard, 2011, p. 93) **

E a história se constrói no eterno. Já o instante, o casual, nem chega a existir, como poderia importar?
Saindo do campo afetivo e voltando às decisões do dia-a-dia. Assim como o vazio, as possibilidades também angustiam. Num mundo cada vez mais esteta ***, nos deparamos com infinitas situações que exigem uma decisão, mas ao invés de decidir, adiamos, procrastinamos; tudo para poder contemplar um pouco mais as possibilidades, refletir mais sobre qual seria a melhor decisão. É claro que refletir sobre escolhas importantes é algo bom, o problema é quando não saímos da reflexão, imaginamos diversas vidas, cada qual com base em uma escolha, mas não escolhemos absolutamente nada, e de repente, a vida passou, enquanto nos perdíamos num contemplamento estético. A insatisfação com nossas vidas é cada vez maior, não por falta de possibilidades, e sim por falta de escolhas, por falta de ação. Abandonar o mundo das possibilidades e arriscar-se no real, errar, quebrar a cara; isso é ser livre, isso é viver. A possibilidade angustia por exibir toda nossa capacidade de vir a ser algo, no entanto, o vir a ser só se realiza pelo agir. O medo de errar nos paralisa a tal ponto, que para não sofrer, decidimos simplesmente não viver, ou melhor, viver numa vida contemplativa, totalmente insatisfeitos com o rumo de nossas vidas, incapazes de admitirmos que poderíamos ter feito qualquer coisa, bastava tomar uma decisão.
Da mesma forma que há relacionamentos vazios, há palavras vazias. Discursar sobre ética não é, nem de longe, ser ético; falar bem sobre o amor, não é amar; pregar a solidariedade, não é ser solidário. Parece trivial, mas em tempos de Facebook, onde curtidas viram amém e compartilhamentos garantem lugares no paraíso; a fala, ou a escrita são vistas como ações. Novamente nos prendemos no contemplamento estético, onde vale mais falar sobre do que fazer algo a respeito.
Enfim, depois de ter visto tudo o que vi (que reforço, foi muito mais do que me propus a abordar aqui) com o excelente professor do Departamento de Filosofia, que me explicou Kierkegaard maravilhosamente, não pude mais adiar a escrita do artigo. Não pude mais adiar o fim dos casos casuais que me angustiavam com o vazio que deixam; mas pude ter certeza de que por mais difícil que tenha sido sair de casa, foi uma ótima decisão, redescobri quão boa é a sensação de liberdade que cada escolha traz. O que vai dar certo e o que não vai é impossível saber de antemão, mas o mundo nunca parou porque alguém estava sofrendo, logo, se der tudo errado, eu vou precisar saber lidar com a situação, e continuar decidindo, continuar vivendo, construindo minha história.
Porque viver é arriscar-se, e decidir é ser livre!

* Aplicativos cujas finalidades são relacionamentos sexuais casuais.
** Editora Vozes – Coleção Vozes de Bolso.
*** Um esteta aqui, deve ser visto como um pensador, um poeta. Uma pessoa que dedica-se mais à observação e contemplação das possibilidades do que à ação efetiva. Como foi dito no texto, analisar as possibilidades e observar os fatos não são um problema, o problema encontra-se na falta de decisão e ação diante das possibilidades.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Entre ter e não ter, ser e não ser no/o tempo

Mayara

          Depois de outro feriado prolongado, em que o tempo "livre" pareceu um convite para ocupa-lo com demandas há muito postergadas, intensificou uma reflexão sobre como temos lidado com essa contingência cotidiana, o tempo. Não que o "problema" de lidar com o tempo não seja algo que se repita em conversas e reclamações a todo momento, mas esse assunto tem me sensibilizado toda vez que tenho vontade de fazer algo que não está nos meus planos e/ou que pode não parecer tão importante quanto os meus "compromissos" de fato. Alguns dias atrás estava na sessão do filme ”Kara’i Ha’egui Kunha Karai ‘Ete*” (Os Verdadeiros Líderes Espirituais), e no intervalo parei para conversar com o Sr. Alcindo Wherá Tupa, líder espiritual guarani que conta com 105 anos de muita experiência, foram poucas palavras, mas tudo muito intenso. Agradeci pela sua presença e perguntei algumas coisas sobre sua estadia em Belo Horizonte, ele respondeu com um belo sorriso que tinha sido muito bem recebido, mas que desejava voltar pra casa. Em meio às suas palavras, que saíam com uma incrível leveza, ele disse que as coisas aqui eram aceleradas demais. Isso me incomodou muito, pois era algo sobre o que eu já vinha refletindo bastante. A sabedoria do Sr. Alcindo é indiscutível, o conhecimento que se pode apreender em um minuto de conversa é muito maior que mil livros podem oferecer. E exatamente naquele dia, quase não fui àquela sessão de cinema porque tinha outros "compromissos", alguns, inclusive, que diziam respeito à vida acadêmica.
          Fiquei pensando como estamos sempre preocupados com o tempo, os horários ditam nossa vida e nos aprisionam em marcadores que muitas vezes são imperceptíveis. É quase impossível passarmos um dia sequer sem olhar no relógio ou tentarmos de algum modo nos situarmos no tempo. O frenesi da vida urbana retira boa parte da nossa autonomia, quanta coisa gostaríamos de encaixar nessa nossa agenda que já nem é possível cumprir? Quantas atividades deixamos de praticar devido às exigências cotidianas? Ou até mesmo quanto ócio poderia permear nossas vidas? Momentos completamente livres, sem que necessariamente planos e metas estejam na fila das responsabilidades. Coisas simples, como se dar ao direito de dormir um dia inteiro, de não ler aqueles textos pra aula, não limpar o apartamento, de ver um filme ou vários, ou de ouvir música e olhar para o horizonte… Fazer tudo o que nossa consciência nos sugere, e que nos causa um sentimento de inutilidade, culpa ou de desperdício de tempo.
          Talvez seja por isso que eu goste tanto de viajar, pois são minhas imersões num universo em que o compromisso é não ter compromisso que me faz sentir mais leve, me possibilitando ver que menos é muitas vezes mais. Os dias que passo longe do espaço-tempo que me sufoca, são momentos em que esqueço das horas, das datas, dos meios de comunicação em massa ou das redes sociais. Tento não delimitar um roteiro, me permitindo experienciar os lugares de acordo com os interesses que vão surgindo. E tudo isso renova minhas energias, mas também me faz perceber que não quero continuar imprimindo um ritmo frenético a minha vida, fazendo da exceção o que deveria ser a regra.
          O "problema" não é O tempo, mas como o utilizamos. Não adianta desejarmos que os dias durem 40 horas ou que as semanas tenham 20 dias, se iremos ocupar todo o tempo disponível com mais obrigações. A questão da relatividade do tempo (não em termos da física quântica, mas de percepções/práticas) pode ser percebida nesses instantes que resolvemos não fazer nada, nos dias mais longos das férias ou em simples momentos que ostentamos o ócio. Desapegar dos marcadores espaço-temporais implica liberdade, o que nos é negado a todo momento, para alguns ainda mais que para outros.
          É claro que muita gente não pode se dar ao luxo de se livrar dessas amarras rotineiras. Para a classe trabalhadora, que acorda cada vez mais cedo e volta pra casa ainda mais tarde, se tem uma coisa que não acelerou foram os meios de transporte público, e o tempo torna-se mais um adversário diário. No entanto, repensar esses modelos acelerados de estar no mundo, que ditam nossas relações pelo consumo, pela negação do ócio (negócio), parece-me cada vez mais necessário. Poder dedicar mais tempo a viver ao invés de somente ver a vida passar não diz respeito apenas ao que designam como qualidade de vida, mas, mais que isso, é nos dar a chance de seguirmos com o tempo e não contra o tempo.

            Obrigada Sr. Alcindo por viver tanto e tão bem!!!

*Sinopse: O filme conta a história de vida do Sr. Alcindo Moreira, um importante líder espiritual Guarani, de 105 anos de idade, e de D. Rosa Poty-Dja, sua esposa, que vivem na Aldeia Yynn Moroti Werá, Terra Indígena de Biguaçu, em Santa Catarina. A inspiração do cineasta Alberto Alvares veio da admiração e respeito pelos saberes orais transmitidos por Wera tupã, o Sr. Alcindo Moreira e sua esposa Poty Dja, Dona Rosa, que são exemplos de sabedoria e espiritualidade do Povo Guarani.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Revolução Demográfica no Brasil

Charles

“Era um sistema totalmente maluco. Não é à toa que a gente virou essa sociedade com favelas, deterioração do espaço urbano e criminalidade. A gente fez de tudo para virar isso. Acho até que virou pouco.
Com tudo o que a gente fez lá atrás, é surpreendente como vivemos numa sociedade calma”.
Samuel de Abreu Pessôa, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas.

Lembro-me bem de várias características de minha infância na capital paulista. Da praça em frente a minha casa, do clima de frio acentuado no inverno, do uniforme azul da escola, da garoa. Foi na década de 1980 que vivi minha infância e desta época trago comigo uma série de lembranças marcantes. Em 1985 foi a primeira vez que vi minha mãe chorar, era a morte de Tancredo Neves, lembro-me das maquininhas de remarcação de preços, frenéticas, nos supermercados e meu pai preocupado com os preços que mudavam de um dia para o outro, era o período da hiperinflação no Brasil. Me recordo do pavor imenso que minha mãe tinha em relação a AIDS. Dentre tais lembranças que marcaram e que ainda marcam minha trajetória de vida, como esquecer os almoços na casa do Tio Efigênio, em Guaianazes-SP, eram tantos primos, tantos tios e tanta gente. Era uma casa modesta, com um quintalzinho no fundo cheio de plantações e galinhas. Mas era uma casa cheia de vida. Vida que aos domingos reunia as pessoas, a família e seus agregados.  Foi o mais próximo que estive de uma configuração de “família”, a qual nunca tive de fato. Minha família nuclear era pequena, solitária, meu pai sempre foi um tanto quanto arredio, não gostava de pessoas em nossa casa e saia pouco. Em meados da década de 1990 mudamos para as Minas Gerais e logo ocorreu o falecimento da minha genitora, tornando minha “família” ainda menor. Meu pai, meu irmão e eu. Creio estar ai o motivo de me considerarem tão seco as vezes. Eu acredito que, intrinsecamente, faltou uma grande família em minha formação. Sempre precisei de mais orientação e atenção. Irmãos mais velhos, mais comemorações de aniversário. Natal em família. É tão verdade que busco isso em outras famílias. É sério, fui até agregado, ou melhor, adotado por algumas famílias nesses vários anos. A mais significante é uma família de Belo Horizonte. A família Nascimento, da qual fazem parte o Tiago Heliodoro e a Carol que também escrevem para esse blog. Os natais da família Nascimento são tão emocionantes, tão revigorantes, tão cheios de esperança, verdadeiro natal em família. Casa cheia, presentes, presépio, orações, lágrimas.
Porém, acredito piamente que não poderei configurar uma família nesses moldes, pois não terei vários filhos. Ao contrário da família do meu pai (8 irmãos), ao contrário da família da minha mãe (4 irmãs) e ao contrário da família da minha sogra (12 irmãos). Eu não vejo, em um horizonte de tempo próximo, a menor possibilidade de ter um filho. Não acho que estou preparado. E essa preparação nada tem a ver com minha capacidade psicológica ou meu grau de responsabilidade, isso tudo já tenho. O que me falta é capacidade econômica. Dentro da minha visão de mundo, creio eu não passe nem perto da chance de possuir uma estrutura econômica que possa servir para suprir todas as necessidades de um filho a contento.
Mas engana-se quem acha que estou só, ou que estou exagerando. Essa percepção é cada vez maior no nosso país, principalmente nos centros urbanos. E também não é um costume recente ou passageiro. A diminuição no número de filhos vem se acentuando no Brasil desde a década de 1980. Foi a década de confirmação da Revolução Demográfica no Brasil.
A Revolução Demográfica brasileira tem início na década de 1930, posto que a partir desta época as taxas de mortalidade começam a cair no Brasil, devido aos avanços na medicina, ações de saúde pública e alguma melhora nos padrões de vida. Apesar disso, as famílias continuaram tendo um número elevado de filhos, com média superior a seis filhos para cada mulher até os anos 60. A combinação da queda na taxa de mortalidade com a alta taxa de fecundidade gerou um crescimento rápido da população brasileira entre os anos 40 e 60. Essa sequência de fatos ficou conhecida como “explosão demográfica brasileira”. Na década de 50 a população brasileira totalizava 51.944.397 habitantes, bem longe do resultado do último censo realizado no Brasil em 2010 onde os resultados, apontaram uma população formada por 190.732.694 pessoas. Nos últimos 50 anos houve um grande salto demográfico no território brasileiro, o país teve um aumento de aproximadamente 130 milhões de pessoas. No curto período de 1991 a 2005, a população brasileira teve um crescimento próximo a 38 milhões de indivíduos.
A transição demográfica possui um perfil padronizado, de uma forma geral, que pode ser observado em quase todos os países. Num primeiro momento você tem mortalidade alta e fecundidade alta, com crescimento populacional próximo do zero. É o caso da Europa antes da Revolução Industrial. Com o processo de urbanização, com programas de saneamento básico e saúde alcançando a maior parte da população as taxas de mortalidade começam então a cair, numa velocidade maior do que as taxas de fecundidade, o que gera um rápido aumento da população. Posteriormente cai a taxa de fecundidade e, no último momento, as duas taxas são baixas. É quando você passa a ter crescimento zero ou negativo. É nesse nível que se encontram os países considerados mais ricos, dos quais o Brasil está se aproximando.
Estudiosos da demografia no Brasil concordam que essa fase transitória da demografia é comum a quase todos os países, mas afirmam que existe uma variação na duração e nos efeitos deste período, ou seja, cada país possui características próprias dentro dessa fase de transição. O caso brasileiro, no século XX, foi muito mais rápido do que tudo que já havia acontecido anteriormente. Tomemos como exemplo a comparação entre o Brasil e a Inglaterra. O processo de transição que aqui realizamos em 40 anos, os ingleses levaram 120 anos para concluir.
Quando buscamos identificar um conjunto de razões para explicar o processo que levou a revolução demográfica no Brasil, necessariamente encontramos explicações com bases econômicas. A urbanização e as pressões com o custo de vida a partir dos anos 70 fizeram com que os casais tivessem menos filhos. Outro ponto importante para essa conjuntura é o ingresso da mulher no mercado de trabalho, com o assalariamento, inclusive no mundo rural, elas passaram a ter uma jornada fixa e com isso veio uma pressão para diminuírem o número de filhos.
Professor Titular do Departamento de Demografia da UFMG, Eduardo Rios-Neto, chama a atenção para o papel da tevê neste processo. Nos anos 90 ele participou, ao lado de outros demógrafos e cientistas sociais, de uma pesquisa que procurava analisar a influência das telenovelas no tamanho das famílias. Descobriu-se que a Rede Globo teve, pouco a pouco, um efeito de modernização da sociedade. As famílias que apareciam nas telas nunca eram grandes, ou por ser difícil escrever tramas para famílias maiores ou por ser difícil dirigir crianças. O padrão televisivo teve uma influência considerável em todas as regiões e todas as classes sociais brasileiras. A soma de tudo isso fez com que a taxa de fecundidade no Brasil caísse. Em 1980, as mulheres brasileiras ainda tinham, em média, 4,4 filhos ao longo de toda a vida. Em 1991, eram apenas 2,7 filhos. No último Censo, feito em 2010, cada mulher tinha em média 1,9, filhos, já abaixo da taxa de reposição da população que é de 2,1 filhos por mãe.
A queda na taxa de fecundidade provocou uma revolução no mercado de trabalho brasileiro. O que vemos atualmente no mercado de trabalho brasileiro contraria a lógica da oferta e da procura de mão de obra até então. Até os anos 80 tínhamos no Brasil um crescimento desordenado da população e baixo investimento na educação pública, o que acabou gerando uma mão de obra desqualificada, e que de acordo com a lógica de mercado mantinha os salários baixos. Entre as décadas de 50 e 70 no Brasil, período em que a população mais crescia, o investimento no estudante universitário era até 75 vezes maior que o investimento no estudante do ensino fundamental de escola pública. Obviamente, quem cursava ensino superior público era a elite do país (dependendo do curso ainda é), aumentando muito neste período a desigualdade social no Brasil. O Estado barrava a oportunidade de ascensão social para os pobres – pobreza reproduzindo pobreza.
Segundo o economista Samuel de Abreu Pessôa, pesquisador e professor da pós-graduação em economia da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro, essa estrutura que aumentou a desigualdade social no país produziu uma sociedade extremamente conflituosa. “Era um sistema totalmente maluco. Não é à toa que a gente virou essa sociedade com favelas, deterioração do espaço urbano e criminalidade. A gente fez de tudo para virar isso. Acho até que virou pouco. Com tudo o que a gente fez lá atrás, é surpreendente como vivemos numa sociedade calma”.
Com a queda no número de nascidos a população brasileira tende a diminuir o percentual de reposição da população gerando um número menor da parcela ativa, ou seja, de trabalhadores. Devido à diminuição do número de mão de obra os salários tendem a aumentar. Com a intensa queda do número de filhos por mulher na década de 80, o poder público conseguiu colocar a grande maioria das crianças na escola (programas como o Fundef e o Toda Criança na Escola contribuíram para alavancar os indicadores quantitativos desse nível de ensino na gestão FHC. A meta era de colocar 98% das crianças de 7 a 14 anos no ensino fundamental). No final dos anos 2000 essa geração chegou ao mercado de trabalho. Um número menor de jovens e mais bem educados, o que acaba por influenciar a oferta de trabalho no Brasil, posto que a existência de um número significativamente menor de pessoas oferecendo trabalho leva a uma perceptível dificuldade para a contratação de mão de obra, fazendo com que os empregadores valorizem mais seus funcionários. Além disso, o aumento do tempo de permanência na escola destes trabalhadores constituiu uma qualificação, mesmo que pequena, possibilitando o trabalhador o poder de negociação, de mudança. Meu pai, que só estudou até a quarta série, trabalhou na mesma empresa por 20 anos. Ele sempre torcia o nariz quando eu mudava de emprego. Esses fatos retiram um enorme poder dos ricos capitalistas, uma vez que eles precisam dar uma maior valorização aos trabalhadores, como melhorias salariais, para contratar e também manter seu quadro de funcionários. Os benefícios das mudanças geradas pela revolução demográfica são facilmente percebidos quando se observa o índice de desemprego no Brasil nas duas primeiras décadas do século XXI, uma média de 6 a 7%. Ao contrário das décadas de 80 e 90 onde a taxa de desemprego eram muito maiores.
Para além da relevância das modificações históricas que a transição demográfica causou – e continua causando – na sociedade brasileira, é importante ressaltar que o seu papel não é levado em conta como deveria, ou simplesmente não é considerado. Em parte por culpa da nossa mídia, a de maior exposição, que costuma veicular informações superficiais e unilaterais. Por outro lado pela credibilidade, demasiada, que a população dispensa aos discursos político-partidários repletos de interesses muito mais particulares do que públicos.
A revolução demográfica no Brasil coloca em questão as contribuições dos governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Entre os anos de 1990 e 1995 a parcela da população de 0 a 14 anos cresceu apena 1%, representando uma enorme queda de crescimento em relação à década anterior, e no período de 1995 a 2000 essa parcela da população teve sua taxa de crescimento negativa, começando então a diminuir. Essa estabilização no número de crianças no Brasil, no início do século XXI, contribuiu para o aumento do acesso a escola fundamental, durante os anos do governo Fernando Henrique, como já vimos. Essa mesma geração começou a entrar no mercado de trabalho dez anos mais tarde, durante o governo Lula, diminuindo, em números absolutos, a oferta de mão de obra, o que acabou por gerar uma necessária valorização dessa mão de obra por parte dos empregadores, devido a sua escassez.  Desta forma, para uma compreensão adequada das mudanças das políticas públicas nos últimos vinte anos e dos avanços sociais mais recentes no Brasil, é imprescindível entender a revolução demográfica no Brasil.
Na comemoração dos dez anos do PT no poder (02/2013), Lula anunciou a candidatura de Dilma à reeleição. “Nós não herdamos nada, nós construímos”, disse Dilma em seu discurso. No mesmo dia, o tucano Aécio Neves, discursou no Senado, segundo ele o PT desde que assumiu o poder está apenas “exaurindo a herança bendita”, que o governo Fernando Henrique lhe legou.
No centro das discussões entre PT e PSDB está o desenvolvimento dos indicadores sociais do país, o controle do desemprego e da inflação, melhora na qualidade educacional, etc.. Os dois partidos querem atribuir a si todo o processo de melhora social que o país vem passando. Os partidos deveriam reconhecer a contribuição da revolução demográfica e suas consequências, propor um debate público e aberto, e a partir deste ponto propor melhorias e aprofundamento dos pontos que já estão sendo desenvolvidos. Diante de um processo tão incisivo e que se configurou em longo prazo como a revolução demográfica no Brasil, nossos políticos discursão como verdadeiros salvadores da Pátria.