Mayara
Depois de outro feriado prolongado, em que o tempo "livre" pareceu um
convite para ocupa-lo com demandas há muito postergadas, intensificou uma
reflexão sobre como temos lidado com essa contingência cotidiana, o tempo. Não
que o "problema" de lidar com o tempo não seja algo que se repita em
conversas e reclamações a todo momento, mas esse assunto tem me sensibilizado
toda vez que tenho vontade de fazer algo que não está nos meus planos e/ou que
pode não parecer tão importante quanto os meus "compromissos" de
fato. Alguns dias atrás estava na sessão do filme ”Kara’i Ha’egui Kunha Karai ‘Ete*” (Os
Verdadeiros Líderes Espirituais), e no intervalo parei para conversar com o Sr.
Alcindo Wherá Tupa, líder espiritual guarani que
conta com 105 anos de muita experiência, foram poucas palavras, mas tudo muito
intenso. Agradeci pela sua presença e perguntei algumas coisas sobre sua
estadia em Belo Horizonte, ele respondeu com um belo sorriso que tinha sido
muito bem recebido, mas que desejava voltar pra casa. Em meio às suas palavras, que saíam com uma incrível leveza, ele disse que as coisas aqui eram aceleradas
demais. Isso me incomodou muito, pois era algo sobre o que eu já vinha
refletindo bastante. A sabedoria do Sr. Alcindo
é indiscutível, o conhecimento que se pode apreender em um minuto de conversa é
muito maior que mil livros podem oferecer. E exatamente naquele dia, quase não
fui àquela sessão de cinema porque tinha outros "compromissos", alguns,
inclusive, que diziam respeito à vida acadêmica.
Fiquei
pensando como estamos sempre preocupados com o tempo, os horários ditam nossa
vida e nos aprisionam em marcadores que muitas vezes são imperceptíveis. É
quase impossível passarmos um dia sequer sem olhar no relógio ou tentarmos de
algum modo nos situarmos no tempo. O frenesi da vida urbana retira boa parte da
nossa autonomia, quanta coisa gostaríamos de encaixar nessa nossa agenda que já
nem é possível cumprir? Quantas atividades deixamos de praticar devido às
exigências cotidianas? Ou até mesmo quanto ócio poderia permear nossas vidas?
Momentos completamente livres, sem que necessariamente planos e metas estejam
na fila das responsabilidades. Coisas simples, como se dar ao direito de dormir
um dia inteiro, de não ler aqueles textos pra aula, não limpar o apartamento, de
ver um filme ou vários, ou de ouvir música e olhar para o horizonte… Fazer tudo
o que nossa consciência nos sugere, e que nos causa um sentimento de
inutilidade, culpa ou de desperdício de tempo.
Talvez
seja por isso que eu goste tanto de viajar, pois são minhas imersões num
universo em que o compromisso é não ter compromisso que me faz sentir mais
leve, me possibilitando ver que menos é muitas vezes mais. Os dias que passo
longe do espaço-tempo que me sufoca, são momentos em que esqueço das horas, das
datas, dos meios de comunicação em massa ou das redes sociais. Tento não
delimitar um roteiro, me permitindo experienciar os lugares de acordo com os interesses
que vão surgindo. E tudo isso renova minhas energias, mas também me faz
perceber que não quero continuar imprimindo um ritmo frenético a minha vida,
fazendo da exceção o que deveria ser a regra.
O
"problema" não é O tempo,
mas como o utilizamos. Não adianta desejarmos que os dias durem 40 horas ou que
as semanas tenham 20 dias, se iremos ocupar todo o tempo disponível com mais
obrigações. A questão da relatividade do tempo (não em termos da física
quântica, mas de percepções/práticas) pode ser percebida nesses instantes que
resolvemos não fazer nada, nos dias mais longos das férias ou em simples
momentos que ostentamos o ócio. Desapegar dos marcadores espaço-temporais
implica liberdade, o que nos é negado a todo momento, para alguns ainda mais que
para outros.
É
claro que muita gente não pode se dar ao luxo de se livrar dessas amarras
rotineiras. Para a classe trabalhadora, que acorda cada vez mais cedo e volta
pra casa ainda mais tarde, se tem uma coisa que não acelerou foram os meios de
transporte público, e o tempo torna-se mais um adversário diário. No entanto,
repensar esses modelos acelerados de estar no mundo, que ditam nossas relações
pelo consumo, pela negação do ócio (negócio),
parece-me cada vez mais necessário. Poder dedicar mais tempo a viver ao invés
de somente ver a vida passar não diz respeito apenas ao que designam como
qualidade de vida, mas, mais que isso, é nos dar a chance de seguirmos com o tempo e não contra o tempo.
Obrigada
Sr. Alcindo por viver tanto e tão bem!!!
*Sinopse: O filme conta a história de
vida do Sr. Alcindo Moreira, um importante líder espiritual Guarani, de 105
anos de idade, e de D. Rosa Poty-Dja, sua esposa, que vivem na Aldeia Yynn
Moroti Werá, Terra Indígena de Biguaçu, em Santa Catarina. A inspiração do
cineasta Alberto Alvares veio da admiração e respeito pelos saberes orais
transmitidos por Wera tupã, o Sr. Alcindo Moreira e sua esposa Poty Dja, Dona
Rosa, que são exemplos de sabedoria e espiritualidade do Povo Guarani.
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