Charles
“Era um sistema totalmente maluco. Não é à toa que
a gente virou essa sociedade com favelas, deterioração do espaço urbano e
criminalidade. A gente fez de tudo para virar isso. Acho até que virou pouco.
Com tudo o que a gente fez lá atrás, é surpreendente como vivemos numa
sociedade calma”.
Samuel de Abreu Pessôa, pesquisador da Fundação
Getúlio Vargas.
Lembro-me bem de várias
características de minha infância na capital paulista. Da praça em frente a
minha casa, do clima de frio acentuado no inverno, do uniforme azul da escola,
da garoa. Foi na década de 1980 que vivi minha infância e desta época trago
comigo uma série de lembranças marcantes. Em 1985 foi a primeira vez que vi
minha mãe chorar, era a morte de Tancredo Neves, lembro-me das maquininhas de
remarcação de preços, frenéticas, nos supermercados e meu pai preocupado com os
preços que mudavam de um dia para o outro, era o período da hiperinflação no
Brasil. Me recordo do pavor imenso que minha mãe tinha em relação a AIDS.
Dentre tais lembranças que marcaram e que ainda marcam minha trajetória de
vida, como esquecer os almoços na casa do Tio Efigênio, em Guaianazes-SP, eram
tantos primos, tantos tios e tanta gente. Era uma casa modesta, com um
quintalzinho no fundo cheio de plantações e galinhas. Mas era uma casa cheia de
vida. Vida que aos domingos reunia as pessoas, a família e seus
agregados. Foi o mais próximo que estive de uma configuração de
“família”, a qual nunca tive de fato. Minha família nuclear era pequena,
solitária, meu pai sempre foi um tanto quanto arredio, não gostava de pessoas
em nossa casa e saia pouco. Em meados da década de 1990 mudamos para as Minas
Gerais e logo ocorreu o falecimento da minha genitora, tornando minha “família”
ainda menor. Meu pai, meu irmão e eu. Creio estar ai o motivo de me
considerarem tão seco as vezes. Eu acredito que, intrinsecamente, faltou uma
grande família em minha formação. Sempre precisei de mais orientação e atenção.
Irmãos mais velhos, mais comemorações de aniversário. Natal em família. É tão
verdade que busco isso em outras famílias. É sério, fui até agregado, ou
melhor, adotado por algumas famílias nesses vários anos. A mais significante é
uma família de Belo Horizonte. A família Nascimento, da qual fazem parte o
Tiago Heliodoro e a Carol que também escrevem para esse blog. Os natais da
família Nascimento são tão emocionantes, tão revigorantes, tão cheios de esperança,
verdadeiro natal em família. Casa cheia, presentes, presépio, orações, lágrimas.
Porém, acredito piamente que não
poderei configurar uma família nesses moldes, pois não terei vários filhos. Ao
contrário da família do meu pai (8 irmãos), ao contrário da família da minha
mãe (4 irmãs) e ao contrário da família da minha sogra (12 irmãos). Eu não
vejo, em um horizonte de tempo próximo, a menor possibilidade de ter um filho.
Não acho que estou preparado. E essa preparação nada tem a ver com minha
capacidade psicológica ou meu grau de responsabilidade, isso tudo já tenho. O
que me falta é capacidade econômica. Dentro da minha visão de mundo, creio eu
não passe nem perto da chance de possuir uma estrutura econômica que possa
servir para suprir todas as necessidades de um filho a contento.
Mas engana-se quem acha que estou
só, ou que estou exagerando. Essa percepção é cada vez maior no nosso país,
principalmente nos centros urbanos. E também não é um costume recente ou
passageiro. A diminuição no número de filhos vem se acentuando no Brasil desde
a década de 1980. Foi a década de confirmação da Revolução Demográfica no
Brasil.
A Revolução Demográfica
brasileira tem início na década de 1930, posto que a partir desta época as
taxas de mortalidade começam a cair no Brasil, devido aos avanços na medicina,
ações de saúde pública e alguma melhora nos padrões de vida. Apesar disso, as
famílias continuaram tendo um número elevado de filhos, com média superior a
seis filhos para cada mulher até os anos 60. A combinação da queda na taxa de
mortalidade com a alta taxa de fecundidade gerou um crescimento rápido da
população brasileira entre os anos 40 e 60. Essa sequência de fatos ficou
conhecida como “explosão demográfica brasileira”. Na década de 50 a população brasileira totalizava 51.944.397 habitantes,
bem longe do resultado do último censo realizado no Brasil em 2010 onde os
resultados, apontaram uma população formada por 190.732.694 pessoas. Nos
últimos 50 anos houve um grande salto demográfico no território brasileiro, o
país teve um aumento de aproximadamente 130 milhões de pessoas. No curto
período de 1991 a 2005, a população brasileira teve um crescimento próximo a 38
milhões de indivíduos.
A transição demográfica possui um
perfil padronizado, de uma forma geral, que pode ser observado em quase todos
os países. Num primeiro momento você tem mortalidade alta e fecundidade alta,
com crescimento populacional próximo do zero. É o caso da Europa antes da
Revolução Industrial. Com o processo de urbanização, com programas de
saneamento básico e saúde alcançando a maior parte da população as taxas de
mortalidade começam então a cair, numa velocidade maior do que as taxas de
fecundidade, o que gera um rápido aumento da população. Posteriormente cai a
taxa de fecundidade e, no último momento, as duas taxas são baixas. É quando
você passa a ter crescimento zero ou negativo. É nesse nível que se encontram
os países considerados mais ricos, dos quais o Brasil está se aproximando.
Estudiosos da demografia no
Brasil concordam que essa fase transitória da demografia é comum a quase todos
os países, mas afirmam que existe uma variação na duração e nos efeitos deste
período, ou seja, cada país possui características próprias dentro dessa fase
de transição. O caso brasileiro, no século XX, foi muito mais rápido do que tudo
que já havia acontecido anteriormente. Tomemos como exemplo a comparação entre
o Brasil e a Inglaterra. O processo de transição que aqui realizamos em 40
anos, os ingleses levaram 120 anos para concluir.
Quando buscamos identificar um
conjunto de razões para explicar o processo que levou a revolução demográfica
no Brasil, necessariamente encontramos explicações com bases econômicas. A
urbanização e as pressões com o custo de vida a partir dos anos 70 fizeram com
que os casais tivessem menos filhos. Outro ponto importante para essa
conjuntura é o ingresso da mulher no mercado de trabalho, com o assalariamento,
inclusive no mundo rural, elas passaram a ter uma jornada fixa e com isso veio
uma pressão para diminuírem o número de filhos.
O Professor Titular do Departamento de Demografia da UFMG, Eduardo
Rios-Neto, chama a atenção para o papel da tevê neste processo. Nos
anos 90 ele participou, ao lado de outros demógrafos e cientistas sociais, de
uma pesquisa que procurava analisar a influência das telenovelas no tamanho das
famílias. Descobriu-se que a Rede Globo teve, pouco a pouco, um efeito de
modernização da sociedade. As famílias que apareciam nas telas nunca eram
grandes, ou por ser difícil escrever tramas para famílias maiores ou por ser
difícil dirigir crianças. O padrão televisivo teve uma influência considerável
em todas as regiões e todas as classes sociais brasileiras. A soma de tudo isso
fez com que a taxa de fecundidade no Brasil caísse. Em 1980, as mulheres
brasileiras ainda tinham, em média, 4,4 filhos ao longo de toda a vida. Em
1991, eram apenas 2,7 filhos. No último Censo, feito em 2010, cada mulher tinha
em média 1,9, filhos, já abaixo da taxa de reposição da população que é de 2,1
filhos por mãe.
A queda na taxa de fecundidade
provocou uma revolução no mercado de trabalho brasileiro. O que vemos
atualmente no mercado de trabalho brasileiro contraria a lógica da oferta e da
procura de mão de obra até então. Até os anos 80 tínhamos no Brasil um
crescimento desordenado da população e baixo investimento na educação pública,
o que acabou gerando uma mão de obra desqualificada, e que de acordo com a
lógica de mercado mantinha os salários baixos. Entre as décadas de 50 e 70 no
Brasil, período em que a população mais crescia, o investimento no estudante
universitário era até 75 vezes maior que o investimento no estudante do ensino
fundamental de escola pública. Obviamente, quem cursava ensino superior público
era a elite do país (dependendo do curso ainda é), aumentando muito neste
período a desigualdade social no Brasil. O Estado barrava a oportunidade de
ascensão social para os pobres – pobreza reproduzindo pobreza.
Segundo o economista Samuel de
Abreu Pessôa, pesquisador e professor da
pós-graduação em economia da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro,
essa estrutura que aumentou a desigualdade social no país produziu uma
sociedade extremamente conflituosa. “Era um sistema totalmente maluco.
Não é à toa que a gente virou essa sociedade com favelas, deterioração do
espaço urbano e criminalidade. A gente fez de tudo para virar isso. Acho até
que virou pouco. Com tudo o que a gente fez lá atrás, é surpreendente como
vivemos numa sociedade calma”.
Com a queda no
número de nascidos a população brasileira tende a diminuir o percentual de
reposição da população gerando um número menor da parcela ativa, ou seja, de
trabalhadores. Devido à diminuição do número de mão de obra os salários tendem
a aumentar. Com a intensa queda do número de filhos por mulher na década de 80,
o poder público conseguiu colocar a grande maioria das crianças na escola
(programas como o Fundef e o Toda Criança na Escola contribuíram para alavancar
os indicadores quantitativos desse nível de ensino na gestão FHC. A meta era de
colocar 98% das crianças de 7 a 14 anos no ensino fundamental). No final
dos anos 2000 essa geração chegou ao mercado de trabalho. Um número menor de
jovens e mais bem educados, o que acaba por influenciar a oferta de trabalho no
Brasil, posto que a existência de um número significativamente menor de pessoas
oferecendo trabalho leva a uma perceptível dificuldade para a contratação de
mão de obra, fazendo com que os empregadores valorizem mais seus funcionários.
Além disso, o aumento do tempo de permanência na escola destes trabalhadores
constituiu uma qualificação, mesmo que pequena, possibilitando o trabalhador o
poder de negociação, de mudança. Meu pai, que só estudou até a quarta série,
trabalhou na mesma empresa por 20 anos. Ele sempre torcia o nariz quando eu
mudava de emprego. Esses fatos retiram um enorme poder dos ricos capitalistas,
uma vez que eles precisam dar uma maior valorização aos trabalhadores, como
melhorias salariais, para contratar e também manter seu quadro de funcionários.
Os benefícios das mudanças geradas pela revolução demográfica são facilmente
percebidos quando se observa o índice de desemprego no Brasil nas duas
primeiras décadas do século XXI, uma média de 6 a 7%. Ao contrário das décadas
de 80 e 90 onde a taxa de desemprego eram muito maiores.
Para além da
relevância das modificações históricas que a transição demográfica causou – e
continua causando – na sociedade brasileira, é importante ressaltar que o seu
papel não é levado em conta como deveria, ou simplesmente não é considerado. Em
parte por culpa da nossa mídia, a de maior exposição, que costuma veicular
informações superficiais e unilaterais. Por outro lado pela credibilidade,
demasiada, que a população dispensa aos discursos político-partidários repletos
de interesses muito mais particulares do que públicos.
A revolução demográfica no Brasil
coloca em questão as contribuições dos governos de Fernando Henrique Cardoso e
Luiz Inácio Lula da Silva. Entre os anos de 1990 e 1995 a parcela da população
de 0 a 14 anos cresceu apena 1%, representando uma enorme queda de crescimento
em relação à década anterior, e no período de 1995 a 2000 essa parcela da
população teve sua taxa de crescimento negativa, começando então a diminuir.
Essa estabilização no número de crianças no Brasil, no início do século XXI,
contribuiu para o aumento do acesso a escola fundamental, durante os anos do
governo Fernando Henrique, como já vimos. Essa mesma geração começou a entrar
no mercado de trabalho dez anos mais tarde, durante o governo Lula, diminuindo,
em números absolutos, a oferta de mão de obra, o que acabou por gerar uma
necessária valorização dessa mão de obra por parte dos empregadores, devido a
sua escassez. Desta forma, para uma compreensão adequada das
mudanças das políticas públicas nos últimos vinte anos e dos avanços sociais
mais recentes no Brasil, é imprescindível entender a revolução demográfica no
Brasil.
Na comemoração dos dez anos do PT
no poder (02/2013), Lula anunciou a candidatura de Dilma à reeleição. “Nós não
herdamos nada, nós construímos”, disse Dilma em seu discurso. No mesmo dia, o
tucano Aécio Neves, discursou no Senado, segundo ele o PT desde que assumiu o
poder está apenas “exaurindo a herança bendita”, que o governo Fernando
Henrique lhe legou.
No centro das discussões entre PT
e PSDB está o desenvolvimento dos indicadores sociais do país, o controle do
desemprego e da inflação, melhora na qualidade educacional, etc.. Os dois
partidos querem atribuir a si todo o processo de melhora social que o país vem
passando. Os partidos deveriam reconhecer a contribuição da revolução
demográfica e suas consequências, propor um debate público e aberto, e a partir
deste ponto propor melhorias e aprofundamento dos pontos que já estão sendo
desenvolvidos. Diante de um processo tão incisivo e que se configurou em longo
prazo como a revolução demográfica no Brasil, nossos políticos discursão como
verdadeiros salvadores da Pátria.
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