- Êpa, essa viagem foi muito rápida! - Tô com muito calor! Essa roupa laranja é um inferno. - C viu? Quase morreu. Foi um grande estouro. - Os portões da escolha foi aberto. Saiu um monte de gente de uma vez. Encavalou. - Frita pastel e coxinha Rute. - Vô leva esse pilantra no pau! Zé subiu no andaime. Maria chegou na casa de Andreia para cuidar do Pedrinho. Raimundo acabou desistindo de faltar ao trabalho. Laura faltou e comprou um atestado na praça 7. Ninguém aqui é vítima. Ninguém aqui sou eu.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Revolução Demográfica no Brasil

Charles

“Era um sistema totalmente maluco. Não é à toa que a gente virou essa sociedade com favelas, deterioração do espaço urbano e criminalidade. A gente fez de tudo para virar isso. Acho até que virou pouco.
Com tudo o que a gente fez lá atrás, é surpreendente como vivemos numa sociedade calma”.
Samuel de Abreu Pessôa, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas.

Lembro-me bem de várias características de minha infância na capital paulista. Da praça em frente a minha casa, do clima de frio acentuado no inverno, do uniforme azul da escola, da garoa. Foi na década de 1980 que vivi minha infância e desta época trago comigo uma série de lembranças marcantes. Em 1985 foi a primeira vez que vi minha mãe chorar, era a morte de Tancredo Neves, lembro-me das maquininhas de remarcação de preços, frenéticas, nos supermercados e meu pai preocupado com os preços que mudavam de um dia para o outro, era o período da hiperinflação no Brasil. Me recordo do pavor imenso que minha mãe tinha em relação a AIDS. Dentre tais lembranças que marcaram e que ainda marcam minha trajetória de vida, como esquecer os almoços na casa do Tio Efigênio, em Guaianazes-SP, eram tantos primos, tantos tios e tanta gente. Era uma casa modesta, com um quintalzinho no fundo cheio de plantações e galinhas. Mas era uma casa cheia de vida. Vida que aos domingos reunia as pessoas, a família e seus agregados.  Foi o mais próximo que estive de uma configuração de “família”, a qual nunca tive de fato. Minha família nuclear era pequena, solitária, meu pai sempre foi um tanto quanto arredio, não gostava de pessoas em nossa casa e saia pouco. Em meados da década de 1990 mudamos para as Minas Gerais e logo ocorreu o falecimento da minha genitora, tornando minha “família” ainda menor. Meu pai, meu irmão e eu. Creio estar ai o motivo de me considerarem tão seco as vezes. Eu acredito que, intrinsecamente, faltou uma grande família em minha formação. Sempre precisei de mais orientação e atenção. Irmãos mais velhos, mais comemorações de aniversário. Natal em família. É tão verdade que busco isso em outras famílias. É sério, fui até agregado, ou melhor, adotado por algumas famílias nesses vários anos. A mais significante é uma família de Belo Horizonte. A família Nascimento, da qual fazem parte o Tiago Heliodoro e a Carol que também escrevem para esse blog. Os natais da família Nascimento são tão emocionantes, tão revigorantes, tão cheios de esperança, verdadeiro natal em família. Casa cheia, presentes, presépio, orações, lágrimas.
Porém, acredito piamente que não poderei configurar uma família nesses moldes, pois não terei vários filhos. Ao contrário da família do meu pai (8 irmãos), ao contrário da família da minha mãe (4 irmãs) e ao contrário da família da minha sogra (12 irmãos). Eu não vejo, em um horizonte de tempo próximo, a menor possibilidade de ter um filho. Não acho que estou preparado. E essa preparação nada tem a ver com minha capacidade psicológica ou meu grau de responsabilidade, isso tudo já tenho. O que me falta é capacidade econômica. Dentro da minha visão de mundo, creio eu não passe nem perto da chance de possuir uma estrutura econômica que possa servir para suprir todas as necessidades de um filho a contento.
Mas engana-se quem acha que estou só, ou que estou exagerando. Essa percepção é cada vez maior no nosso país, principalmente nos centros urbanos. E também não é um costume recente ou passageiro. A diminuição no número de filhos vem se acentuando no Brasil desde a década de 1980. Foi a década de confirmação da Revolução Demográfica no Brasil.
A Revolução Demográfica brasileira tem início na década de 1930, posto que a partir desta época as taxas de mortalidade começam a cair no Brasil, devido aos avanços na medicina, ações de saúde pública e alguma melhora nos padrões de vida. Apesar disso, as famílias continuaram tendo um número elevado de filhos, com média superior a seis filhos para cada mulher até os anos 60. A combinação da queda na taxa de mortalidade com a alta taxa de fecundidade gerou um crescimento rápido da população brasileira entre os anos 40 e 60. Essa sequência de fatos ficou conhecida como “explosão demográfica brasileira”. Na década de 50 a população brasileira totalizava 51.944.397 habitantes, bem longe do resultado do último censo realizado no Brasil em 2010 onde os resultados, apontaram uma população formada por 190.732.694 pessoas. Nos últimos 50 anos houve um grande salto demográfico no território brasileiro, o país teve um aumento de aproximadamente 130 milhões de pessoas. No curto período de 1991 a 2005, a população brasileira teve um crescimento próximo a 38 milhões de indivíduos.
A transição demográfica possui um perfil padronizado, de uma forma geral, que pode ser observado em quase todos os países. Num primeiro momento você tem mortalidade alta e fecundidade alta, com crescimento populacional próximo do zero. É o caso da Europa antes da Revolução Industrial. Com o processo de urbanização, com programas de saneamento básico e saúde alcançando a maior parte da população as taxas de mortalidade começam então a cair, numa velocidade maior do que as taxas de fecundidade, o que gera um rápido aumento da população. Posteriormente cai a taxa de fecundidade e, no último momento, as duas taxas são baixas. É quando você passa a ter crescimento zero ou negativo. É nesse nível que se encontram os países considerados mais ricos, dos quais o Brasil está se aproximando.
Estudiosos da demografia no Brasil concordam que essa fase transitória da demografia é comum a quase todos os países, mas afirmam que existe uma variação na duração e nos efeitos deste período, ou seja, cada país possui características próprias dentro dessa fase de transição. O caso brasileiro, no século XX, foi muito mais rápido do que tudo que já havia acontecido anteriormente. Tomemos como exemplo a comparação entre o Brasil e a Inglaterra. O processo de transição que aqui realizamos em 40 anos, os ingleses levaram 120 anos para concluir.
Quando buscamos identificar um conjunto de razões para explicar o processo que levou a revolução demográfica no Brasil, necessariamente encontramos explicações com bases econômicas. A urbanização e as pressões com o custo de vida a partir dos anos 70 fizeram com que os casais tivessem menos filhos. Outro ponto importante para essa conjuntura é o ingresso da mulher no mercado de trabalho, com o assalariamento, inclusive no mundo rural, elas passaram a ter uma jornada fixa e com isso veio uma pressão para diminuírem o número de filhos.
Professor Titular do Departamento de Demografia da UFMG, Eduardo Rios-Neto, chama a atenção para o papel da tevê neste processo. Nos anos 90 ele participou, ao lado de outros demógrafos e cientistas sociais, de uma pesquisa que procurava analisar a influência das telenovelas no tamanho das famílias. Descobriu-se que a Rede Globo teve, pouco a pouco, um efeito de modernização da sociedade. As famílias que apareciam nas telas nunca eram grandes, ou por ser difícil escrever tramas para famílias maiores ou por ser difícil dirigir crianças. O padrão televisivo teve uma influência considerável em todas as regiões e todas as classes sociais brasileiras. A soma de tudo isso fez com que a taxa de fecundidade no Brasil caísse. Em 1980, as mulheres brasileiras ainda tinham, em média, 4,4 filhos ao longo de toda a vida. Em 1991, eram apenas 2,7 filhos. No último Censo, feito em 2010, cada mulher tinha em média 1,9, filhos, já abaixo da taxa de reposição da população que é de 2,1 filhos por mãe.
A queda na taxa de fecundidade provocou uma revolução no mercado de trabalho brasileiro. O que vemos atualmente no mercado de trabalho brasileiro contraria a lógica da oferta e da procura de mão de obra até então. Até os anos 80 tínhamos no Brasil um crescimento desordenado da população e baixo investimento na educação pública, o que acabou gerando uma mão de obra desqualificada, e que de acordo com a lógica de mercado mantinha os salários baixos. Entre as décadas de 50 e 70 no Brasil, período em que a população mais crescia, o investimento no estudante universitário era até 75 vezes maior que o investimento no estudante do ensino fundamental de escola pública. Obviamente, quem cursava ensino superior público era a elite do país (dependendo do curso ainda é), aumentando muito neste período a desigualdade social no Brasil. O Estado barrava a oportunidade de ascensão social para os pobres – pobreza reproduzindo pobreza.
Segundo o economista Samuel de Abreu Pessôa, pesquisador e professor da pós-graduação em economia da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro, essa estrutura que aumentou a desigualdade social no país produziu uma sociedade extremamente conflituosa. “Era um sistema totalmente maluco. Não é à toa que a gente virou essa sociedade com favelas, deterioração do espaço urbano e criminalidade. A gente fez de tudo para virar isso. Acho até que virou pouco. Com tudo o que a gente fez lá atrás, é surpreendente como vivemos numa sociedade calma”.
Com a queda no número de nascidos a população brasileira tende a diminuir o percentual de reposição da população gerando um número menor da parcela ativa, ou seja, de trabalhadores. Devido à diminuição do número de mão de obra os salários tendem a aumentar. Com a intensa queda do número de filhos por mulher na década de 80, o poder público conseguiu colocar a grande maioria das crianças na escola (programas como o Fundef e o Toda Criança na Escola contribuíram para alavancar os indicadores quantitativos desse nível de ensino na gestão FHC. A meta era de colocar 98% das crianças de 7 a 14 anos no ensino fundamental). No final dos anos 2000 essa geração chegou ao mercado de trabalho. Um número menor de jovens e mais bem educados, o que acaba por influenciar a oferta de trabalho no Brasil, posto que a existência de um número significativamente menor de pessoas oferecendo trabalho leva a uma perceptível dificuldade para a contratação de mão de obra, fazendo com que os empregadores valorizem mais seus funcionários. Além disso, o aumento do tempo de permanência na escola destes trabalhadores constituiu uma qualificação, mesmo que pequena, possibilitando o trabalhador o poder de negociação, de mudança. Meu pai, que só estudou até a quarta série, trabalhou na mesma empresa por 20 anos. Ele sempre torcia o nariz quando eu mudava de emprego. Esses fatos retiram um enorme poder dos ricos capitalistas, uma vez que eles precisam dar uma maior valorização aos trabalhadores, como melhorias salariais, para contratar e também manter seu quadro de funcionários. Os benefícios das mudanças geradas pela revolução demográfica são facilmente percebidos quando se observa o índice de desemprego no Brasil nas duas primeiras décadas do século XXI, uma média de 6 a 7%. Ao contrário das décadas de 80 e 90 onde a taxa de desemprego eram muito maiores.
Para além da relevância das modificações históricas que a transição demográfica causou – e continua causando – na sociedade brasileira, é importante ressaltar que o seu papel não é levado em conta como deveria, ou simplesmente não é considerado. Em parte por culpa da nossa mídia, a de maior exposição, que costuma veicular informações superficiais e unilaterais. Por outro lado pela credibilidade, demasiada, que a população dispensa aos discursos político-partidários repletos de interesses muito mais particulares do que públicos.
A revolução demográfica no Brasil coloca em questão as contribuições dos governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Entre os anos de 1990 e 1995 a parcela da população de 0 a 14 anos cresceu apena 1%, representando uma enorme queda de crescimento em relação à década anterior, e no período de 1995 a 2000 essa parcela da população teve sua taxa de crescimento negativa, começando então a diminuir. Essa estabilização no número de crianças no Brasil, no início do século XXI, contribuiu para o aumento do acesso a escola fundamental, durante os anos do governo Fernando Henrique, como já vimos. Essa mesma geração começou a entrar no mercado de trabalho dez anos mais tarde, durante o governo Lula, diminuindo, em números absolutos, a oferta de mão de obra, o que acabou por gerar uma necessária valorização dessa mão de obra por parte dos empregadores, devido a sua escassez.  Desta forma, para uma compreensão adequada das mudanças das políticas públicas nos últimos vinte anos e dos avanços sociais mais recentes no Brasil, é imprescindível entender a revolução demográfica no Brasil.
Na comemoração dos dez anos do PT no poder (02/2013), Lula anunciou a candidatura de Dilma à reeleição. “Nós não herdamos nada, nós construímos”, disse Dilma em seu discurso. No mesmo dia, o tucano Aécio Neves, discursou no Senado, segundo ele o PT desde que assumiu o poder está apenas “exaurindo a herança bendita”, que o governo Fernando Henrique lhe legou.
No centro das discussões entre PT e PSDB está o desenvolvimento dos indicadores sociais do país, o controle do desemprego e da inflação, melhora na qualidade educacional, etc.. Os dois partidos querem atribuir a si todo o processo de melhora social que o país vem passando. Os partidos deveriam reconhecer a contribuição da revolução demográfica e suas consequências, propor um debate público e aberto, e a partir deste ponto propor melhorias e aprofundamento dos pontos que já estão sendo desenvolvidos. Diante de um processo tão incisivo e que se configurou em longo prazo como a revolução demográfica no Brasil, nossos políticos discursão como verdadeiros salvadores da Pátria.

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